Eunice Prudente, de 75 anos, foi a primeira negra a se tornar professora da tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na década de 1980. Até hoje, é a única. “Sofri questionamentos racistas e tive de enfrentá-los”, conta ela, que só nos últimos anos viu suas turmas ficarem mais diversas. Pelos corredores das universidades públicas, é possível encontrar mais estudantes pretos e pardos – graças às cotas. No comando da sala de aula, porém, esse perfil ainda é raro.

Levantamento feito pelo Estadão mostra que menos de 3% das instituições de ensino superior brasileiras têm número de professores negros que espelha a distribuição racial da região onde está. Em uma década, as cotas e programas como Fies e ProUni ampliaram as oportunidades de acesso na graduação, mas transformar o perfil dos professores é um processo mais lento e difícil. Especialistas apontam que a equidade racial na docência melhora o acolhimento dos diferentes tipos de alunos, enriquece a instituição, para todos, com um ambiente mais diverso e traz mais temas e pontos de vista para a pesquisa.

O Estadão tabulou dados do Censo da Educação Superior de 2019, os últimos divulgados pelo Ministério da Educação. A análise considera que há equidade racial na universidade que possui proporção de docentes negros (pretos e pardos) igual ou superior à de habitantes negros na unidade da Federação em que está instalada.

No Estado de São Paulo, por exemplo, 40% da população é negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na USP, porém, só 3,8% dos professores se declaram negros. Essa universidade não tem equidade racial, segundo os critérios da reportagem.

Já a Universidade do Estado do Amapá (Ueap) possui equidade racial segundo esse critério. Dentre os docentes, 90% são negros, enquanto a população do Estado tem 81% de pretos e pardos.

O recorte feito pelo Estadão leva em conta as universidades onde ao menos 75% dos professores fizeram autodeclaração de raça e que têm mais de 50 docentes. Abrange amostra de 823 das 2.608 instituições que participaram do Censo. Leia mais sobre a metodologia no fim da reportagem.

Entre todas as universidades analisadas, só 23 têm quantidade de professores negros que reflete a distribuição racial no Estado. A única pública é a Universidade do Estado do Amapá.

No gráfico abaixo, cada círculo representa uma instituição de ensino superior. Quanto mais próxima de um, mais equidade racial há no corpo docente. Quanto mais perto de zero, menos diversa é a universidade.

Todas as 59 melhores universidades brasileiras listadas no ranking da revista britânica Times Higher Education, referência mundial na análise do ensino universitária, têm menos docentes negros do que o perfil regional.

Nas 23 universidades com diversidade semelhante à do Estado na docência, os números nem sempre resultam de uma política de inclusão. Onze afirmam não ter programa do tipo, três disseram ter políticas para elevar o número de docentes negros e nove – entre elas a Estadual do Amapá – não responderam.

As faculdades Projeção de Ceilândia e de Sobradinho (DF), afirmam que assinaram um pacto de inclusão racial no mercado de trabalho e mantêm políticas de diversidade, como o cadastro de vagas em plataformas voltadas a profissionais negros. Já a Faculdade Zumbi dos Palmares, que tem como missão incluir pessoas negras no ensino superior, disse que a equidade racial é um dos critérios observados na hora de contratação de professores.

A presença de professores negros (pretos e pardos) nas universidades aumentou de 13,2% em 2012 para 16,2% em 2019. É difícil mensurar a evolução real porque há lacunas na autodeclaração, visto que os docentes não são obrigados a informar sua raça ao Censo. Em universidades como a Federal de Pelotas e do Paraná, por exemplo, mais de 95% dos professores não informaram sua raça na pesquisa de 2019.

Falta de diversidade é ainda maior em universidades públicas

As universidades públicas têm ainda menos docentes negros do que as particulares. Nenhuma das federais possui equidade racial, conforme o critério adotado pela reportagem. A que mais se aproxima da equidade é a Universidade Federal Rural da Amazônia, com 79,4% da quantidade esperada de professores negros.

Entre as causas, estão a pequena proporção dos que acessam a pós-graduação. O doutorado é exigido em concursos públicos na maioria das federais. Segundo balanço de 2019 da Capes, órgão do Ministério da Educação (MEC), só 29% dos alunos de pós eram pretos ou pardos.

E, mesmo entre os que acessam mestrado e doutorado, há dificuldades de permanência. Racismo estrutural e vulnerabilidade econômica dificultam o caminho até a titulação, uma vez que as bolsas pagam pouco. “Temos número significativo de alunos negros na graduação que acabam indo trabalhar no setor privado”, diz Fabiana Schleumer, pró-reitora adjunta de Extensão e Cultura da Federal de São Paulo (Unifesp), negra e professora de História na instituição.

Como a Unifesp, universidades têm apostado em cotas na pós, para permitir que mais alunos negros se formem mestres e doutores e possam entrar no magistério superior. “Independentemente do campo de conhecimento, esse professor traz outros referenciais que vão enriquecer a formação dos alunos”, afirma Fabiana.

A aprovação de políticas, no entanto, não significa resultados imediatos. Desde 2014, uma lei prevê reserva de 20% das vagas em concursos para professores nas federais, mas parte das instituições não adota a regra, sob argumento de fazer processos seletivos pequenos.

A lei só é aplicada quando o número de vagas no concurso é igual ou superior a três. Editais por área do conhecimento abrem, em geral, uma ou duas vagas. “O número de instituições que aplicam o porcentual de 20% é muito baixo”, diz Luiz Mello, professor de Ciências Sociais da Federal de Goiás (UFG), que estuda o cumprimento da regra nas universidades e outros órgãos públicos.

Levantamento da Escola Nacional de Administração Pública mostra que mais da metade das federais não tem professores nomeados em vagas reservadas para negros. Segundo Mello, há pequenos avanços nos últimos anos, impulsionados pela pressão de docentes. A UFG, por exemplo, mudou a metodologia em seus editais. Pelo novo método, que considera o total de vagas oferecidas em várias faculdades, um concurso de 2019 reservou 12 das 59 vagas para docentes negros.

A Federal do Rio (UFRJ), em 2020, aprovou resolução interna que prevê os 20% sobre o total de vagas. A Universidade Federal Fluminense (UFF) também adotou o mesmo entendimento este ano.

“O número de professores negros no ensino superior não aumentou da forma que poderia ter aumentado se a lei tivesse sido aplicada adequadamente”, diz Delton Aparecido Felipe, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Nas estaduais paulistas – que não seguem a lei federal – a disparidade é ainda maior.

“Enquanto as federais já contam com mais de 15% de docentes negros após adoção de cotas em concursos, a Unicamp não chega à marca de 5%”, reconhece Silvia Maria Santiago, diretora executiva de Direitos Humanos da Estadual de Campinas (Unicamp), que discute adotar cotas para concursos de profissionais de apoio ao ensino, pesquisa e extensão. Procurada, a USP não se manifestou.

Outro desafio é garantir a presença de negros em cargos de direção. Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, gestores das universidades devem estar conscientes da desigualdade racial no País e apostar em mecanismos de inclusão.

“Ter consciência negra é compreender que existe uma distorção racial na sociedade. E é essa distorção que leva à desigualdade”. A instituição é a única em São Paulo com número de professores negros compatível com o perfil racial do Estado. Vicente, advogado e doutor em educação, critica a forma de contratar nas instituições públicas.

Ele afirma que esses processos seletivos são baseados exclusivamente na meritocracia, privilegiando quem teve trajetória acadêmica intensa. “Precisa haver mérito, mas não pode ser esse mérito exclusivo dos títulos e do quanto a pessoa sabe sobre um assunto específico. Temos de democratizar os processos seletivos.”

“A gente se relaciona com isso de forma cômoda porque o racismo é capaz de naturalizar até o absurdo”, diz o reitor, sobre a baixa presença dos negros na docência. Além de mudar os processos seletivos, ele diz que é preciso garantir a jovens negros acesso a programas de graduação e pós, assim como sua permanência.

Felipe, da ABPN, também destaca a importância para a permanência. “O número de alunos negros nas universidades aumentou, mas isso não foi suficiente para haver mais pessoas negras em profissões estratégicas, como Engenharia e Medicina. O sucesso profissional desses alunos depende de uma série de fatores, entre eles a presença de professores negros.”

Representatividade inspira alunos e aproxima o ensino da realidade

Professores e alunos negros relatam ao Estadão suas vivências na academia e falam sobre a importância da diversidade na sala de aula. Além de inspirar alunos a seguir estudando, professores negros promovem mudanças na pesquisa e no currículo, aproximando o ensino da realidade brasileira.

“Precisou coragem”, resume Eunice Prudente sobre a trajetória pioneira – e solitária – na Faculdade de Direito da USP. Professora desde os anos 1980, foi a primeira docente negra do Largo de São Francisco, predominantemente branca e masculina.

Lá testemunhou um aumento recente no número de estudantes negros – a USP só adotou cotas raciais na graduação em 2018. Mas ainda vê baixa representatividade racial entre os docentes: décadas depois, continua sendo a única professora negra do Direito da USP. Os relatos de sala de aula vão desde o descrédito por parte de alunos à chance de incentivar discussões sobre questões raciais e de gênero.

“Era muito questionada pelos alunos que vinham das escolas privadas. A primeira escola pública deles era a universidade e nunca haviam tido professores negros. Muitos questionamentos eram racistas mesmo. Tive de enfrentá-los – e com muita compreensão de minha parte”, diz Eunice, também secretária municipal de Justiça de São Paulo.

Nas suas pesquisas durante pós-graduação, discutiu a criminalização do racismo, antes mesmo de a pauta entrar na Constituição de 1988. Depois, orientou dezenas de trabalhos – parte deles sobre justiça antirracista e gênero. Para ela, o fato de haver pouquíssimas “Eunices” na USP tem relação com o baixo incentivo para que estudantes negros – e especialmente as mulheres – sigam nos estudos. “O acesso ao mestrado e doutorado urge ser democratizado. Quem vai mergulhar nas questões econômicas, históricas, sociológicas, antropológicas dessa gravíssima desigualdade socioeconômica do Brasil?”.

A médica Flávia Silva, de 29 anos, não pensava em seguir carreira acadêmica quando concluiu a graduação porque não se sentia acolhida naquele ambiente. “Não me lembro de ter colegas negros na faculdade e tive só dois professores negros. Eu via a academia como um lugar elitista e embranquecido.”

Sua visão mudou quando conheceu a Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), onde atua como professora de Medicina desde 2019. “A UFRB surgiu em contexto de democratização e interiorização do ensino e tem perfil docente e discente diferente do que estamos acostumados”, explica. Ela diz que a universidade tem diálogo forte com a comunidade em que está inserida.

Flávia acredita que é importante ter mais professores negros para que o conhecimento produzido nas universidades reflita a realidade do País. “O Recôncavo da Bahia é a região mais preta do mundo fora de África. Por isso é importante estudar as doenças mais prevalentes nessa população”, exemplifica.

Outro ponto importante é o acolhimento dos alunos. “Fiz residência médica na Federal da Paraíba (UFPB) e era a preceptora do internato. Quando os internos negros descobriam que tinha uma preceptora negra, preferiam ficar comigo”, diz.

Quando Vantuil Pereira, de 52 anos, fez graduação em História, na UFF, não teve sequer um professor negro. Filho de um operário da construção civil e uma dona de casa, ambos semianalfabetos, iniciou a carreira acadêmica de forma tardia, aos 30 anos. Em 2009, chegou à UFRJ como professor e – mais uma vez – encontrava poucos como ele nos corredores.

Por vontade de se conectar com outros docentes negros da UFRJ, ajudou a criar, no ano passado, um coletivo. O trabalho agora é de transformar em números a percepção ao caminhar pela universidade – e pressionar por mudanças. “Normalmente, a baixa representação (de professores negros) é maior nas Engenharias e áreas médicas”, diz Pereira, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.

A pouca presença dificulta o enfrentamento do racismo. É comum que os posicionamentos de professores negros sejam encarados como “vitimização” ou “mimimi”, segundo Pereira. Alunos negros relatam dificuldade de acessar unidades porque, na portaria, não são vistos como estudantes. E até os docentes são confundidos com outros trabalhadores nos campi.

Na docência, a chance é reeducar o olhar. “Ver que o professor é negro tem papel pedagógico importantíssimo.” Na sala de aula, ele discute relações raciais com alunos de diversas áreas – da Medicina à Arquitetura. Também diz ter olhar atento a questões sociais e raciais na hora de recrutar alunos para projetos. Mas entende que as mudanças não podem ser papel só dos professores. “Nenhuma política anda se não tiver o gestor também atento. Não há pressão suficiente sem que as instituições estejam abertas.”

Rute Costa, de 37 anos, foi aluna de graduação da 1ª turma de reserva de vagas na Universidade Estadual do Rio (Uerj) – uma das pioneiras na reserva de vagas para negros. Naquela época, ainda não compreendia o significado e importância dessa política de inclusão. Aprovada em 1.º lugar no mestrado, ouviu, pela primeira vez, o que seus colegas pensavam sobre o cotista.

“Acessavam meu currículo para verificar minhas experiências, (avaliar) se eu deveria pontuar na seleção com nota máxima”, conta. Depois veio o doutorado e, em 2013, a aprovação no concurso para dar aulas na UFRJ. No curso de Nutrição, onde leciona, conta nos dedos das mãos o número de professores negros.

Para Rute, dificuldades no caminho afastam pessoas negras da vida acadêmica. É comum, segundo ela, receber relatos de alunas sobre constrangimentos desde a graduação. “Há professoras que dizem que o cabelo (das estudantes) não traz imagem profissional, que deveriam cortar, abaixar.” A touca, equipamento usado na Nutrição, não tem variedade de tamanhos para o cabelo crespo ou trançado.

À frente de pesquisas sobre culinária afro-brasileira, ela vê desde a escassez de bibliografia até a recepção preconceituosa sobre o tema. Também há dificuldades para “furar a bolha” das revistas científicas – é comum que as pesquisas sejam publicadas só em chamadas específicas para estudos raciais. Para Rute, os entraves são como uma teia: supera-se um e aparecem outros. A mudança, diz, tem de ser política. “Não podemos colocar nas mãos de um indivíduo a responsabilidade de superar todas as barreiras para que acesse as melhores experiências.”

Jonathan Vicente, biomédico e mestrando no programa de Medicina Preventiva da USP, sente falta de referências negras dentro da academia. Ele conta que teve três professores negros na graduação, feita em curso privado com o Financiamento Estudantil (Fies). Agora, na pós, todos os seus professores são brancos.

“É importante ter professores negros para humanizar a ciência, a Medicina. Eles ajudam o aluno a ter uma visão diferente, a entender melhor a realidade da nossa população”, acredita. Para ele, o exemplo é uma das peças-chaves na relação docente-aluno. “Essa representatividade é muito importante para que o aluno se sinta mais confortável em mostrar seu trabalho, sua pesquisa”, menciona.

E foi o exemplo de professores negros que incentivou Jonathan a ingressar no mestrado. “Foram eles que abriram minha mente para a pesquisa. Uma das minhas professoras, que era negra, dizia que eu devia ir para a academia e abrir meus horizontes”, lembra.

Assim que concluir o mestrado, Jonathan planeja se candidatar ao doutorado e já mira instituições de outros países. “Vejo que as universidades internacionais estão buscando diversidade maior e criam editais para pessoas da África e da América Latina”, fala. No futuro, pretende ser professor. “A população negra está começando a entrar na academia e quero seguir essa carreira”, diz.

METODOLOGIA

Com base nos dados do Censo da Educação Superior de 2019, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), do Ministério da Educação (MEC), calculamos a proporção de professores negros (pretos e pardos) em cada instituição de ensino superior (IES). Desconsideramos as IES nas quais mais de 25% dos professores não declararam a raça. A autodeclaração racial não é obrigatória e incluir universidades onde poucos professores preencheram este dado poderia distorcer o resultado da análise. Também excluímos da análise individual as instituições que têm menos de 50 professores porque amostras muito pequenas podem distorcer o resultado. Com isso, chegamos a uma lista com 823 universidades públicas e privadas de todas as unidades da federação.

O segundo passo foi comparar a proporção de professores negros em cada universidade com a proporção de habitantes negros na unidade da federação em que a instituição está localizada. A intenção é ver se a universidade reflete o perfil da comunidade em que está inserida. Consideramos que há equidade racial nas universidades que possuem proporção de docentes negros igual ou superior à proporção de habitantes negros.

Também montamos o perfil do professor negro a partir de dados como idade, grau de escolaridade e atuação em pesquisa. Para ver as análises com mais detalhes, acesse o Github. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.