Pela ótica estritamente financeira, as empresas estatais são um peso para o Estado. O conjunto de 138 companhias federais consome mais recursos do que devolve aos cofres da União. No acumulado dos últimos seis anos, a diferença entre o dinheiro repassado pelo Tesouro Nacional e o retorno gerado pelas empresas públicas por meio de dividendos e outros instrumentos financeiros ficou negativa em R$ 46,6 bilhões, o suficiente para bancar um ano e meio de Bolsa Família, responsável por transferir recursos a 14 milhões de famílias de baixa renda. O debate sobre privatizações ganhou força novamente diante da falência fiscal e foi encampado com ênfase pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Como liberal ferrenho, ele promete executar um ambicioso programa de desestatização, no qual estará em xeque um amplo rol de instituições, em setores tão diversos como indústria e saúde. O que faz sentido vender?

As companhias estatais têm como objetivo prestar serviços de interesse público, em atividades que supostamente não despertariam a atenção de investidores privados. No Brasil, os casos remontam ao século 19, com o surgimento do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. O processo foi continuado ao longo de todo o século seguinte, quando foram criados gigantes como Petrobras, na década de 1950, e a Infraero, na década de 1970. Para além de ideologias sobre o papel do Estado na economia, especialistas avaliam que o custo-benefício deve ser constantemente reavaliado, para identificar se é justificada a manutenção do controle público. “Ponderar o impacto fiscal é muito importante, mas é igualmente fundamental analisar o que cada estatal entrega de serviços e se o seu gasto é justificado”, afirma o professor de Estratégia do Insper, Sérgio Lazzarini. “Em tese, a desestatização pode contribuir para o quadro fiscal no caso de estatais que consomem muitos recursos e entregam pouco ou nada de impacto público.”

Barrada no Congresso: processo de privatização da Eletrobras enfrentou resistência de parlamentares. Venda será retomada por Bolsonaro

O conjunto das empresas estatais é dividido entre dependentes do Tesouro Nacional (18 instituições) e não dependentes (29). Somam-se a outras 91 subsidiárias. A relação próxima com os cofres públicos coloca o primeiro grupo na mira da equipe Guedes. Há nomes potenciais para eventual venda como a Valec, da área ferroviária, que amargou um prejuízo de R$ 947 milhões em 2017 e acumula mais de R$ 10 bilhões em recursos recebidos da União nos últimos seis anos. No mesmo segmento há a Empresa de Planejamento Logístico (EPL), criada originalmente para implementar o trem-bala, também deficitária, e que recebeu mais de R$ 300 milhões em subvenções e aumentos de capital de 2012 a 2017, segundo dados do Tesouro Nacional.

A lista também traz exemplos de casos em que a privatização parece não ser justificada, como o da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A estatal tem um dos maiores graus de dependência dos recursos públicos (99%) e expressa a fragilidade financeira em números – o patrimônio líquido está negativo em quase R$ 2 bilhões. Em seis anos, o governo federal repassou quase R$ 16 bilhões em recursos para a companhia, mas o papel da estatal é considerado fundamental no avanço da produtividade agrícola no Brasil. Para alguns especialistas, casos como esse poderiam ser resolvidos com uma revisão de natureza jurídica. “Em vez de empresa, poderia ser um instituto”, afirma o economista Marcel Balassiano, da FGV/Ibre. “Não entraria na conta do déficit das estatais.”

O programa de governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) dedica um capítulo para as estatais e dá ênfase ao conjunto das dependentes, citando a Valec, a EPL e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “O gasto é altíssimo e crescente e o retorno não é vantajoso”, defende o documento. Além de venda para iniciativa privada, também se cogita a extinção de algumas empresas. Os recursos arrecadados com as privatizações devem ser usados para o abatimento da dívida pública. Guedes chegou a declarar que pretende levantar R$ 1 trilhão com o processo de venda de ativos – incluindo imóveis. No programa de governo há ainda uma estimativa de abater 20% da dívida pública com esses recursos. Os números, porém, são considerados superestimados pela maioria dos especialistas. “O positivo é que ele entrou no debate”, afirma Balassiano. “O Bolsonaro não foi eleito por causa disso, mas pela primeira vez o Brasil pode ter um projeto liberal com um debate que está acontecendo.”

Salim Mattar, fundador da Localiza, comandará as Privatizações. Governo quer levantar R$ 1 trilhão

Para comandar o programa de venda das empresas públicas, Guedes escalou o empresário Salim Mattar, fundador da Localiza. À frente da Secretaria de Privatizações, o executivo terá como desafio inicial finalizar a venda do controle da Eletrobras, iniciada no governo Michel Temer. O processo da gigante energética mostra que os problemas financeiros não estão restritos ao grupo das estatais dependentes do Tesouro. A companhia encerrou o ano com um prejuízo de R$ 1,7 bilhão e engloba as quatro subsidiárias com os maiores patrimônios líquidos negativos, um sinal de inviabilidade financeira do negócio.

O caso Eletrobras mostra o tamanho do desafio que será enfrentando para convencer a população e os parlamentares da real necessidade de privatização. Num levantamento do final de 2017, 70% dos entrevistados pelo Datafolha se declararam contra a venda de companhias públicas. Num esforço para qualificar melhor essa avaliação, uma pesquisa da Ipsos mostrou que a aprovação fica ainda mais baixa se a privatização estiver atrelada ao abatimento de dívida pública – somente 14,9% se disseram favoráveis, ante 17,3% de forma geral no levantamento geral da Ipsos. O percentual favorável aumenta quando écolocada a hipótese de que a empresa seja repassada à iniciativa privada, mas com um processo que inclua aprimoramentos regulatórios para evitar preços excessivos e garantir a qualidade de serviços. Nessa situação, a aprovação alcança 27,6% – ainda assim um nível desafiador. “O novo governo tem de pensar nas batalhas que têm pela frente”, afirma Lazzarini, do Insper. “Eu não entraria numa briga para privatizar maciçamente em conjunto com uma batalha que é a reforma da Previdência.”

Para Lazzarini, é preciso qualificar o debate a partir da eficiência do gasto público e não do caráter ideológico. Num exercício que fez sobre uma potencial privatização da Caixa Econômica Federal, em conjunto com os economistas Marcos Lisboa e Klenio Barbosa, o professor do Insper concluiu que embora os custos de controle estatal pareçam superar os possíveis benefícios, há necessidade de aprimoramentos regulatórios para garantir a prestação eficiente de serviços de interesse público, como a gestão de programas sociais, por meio, por exemplo, do monitoramento de indicadores operacionais dos repasses. Bolsonaro já deu sinais de que dificilmente irá privatizar a Caixa por completo. A companhia está incluída num restrito grupo de estatais consideradas estratégicas, entre as quais também figuram a Petrobras e o Banco do Brasil. Ainda assim, os presidentes nomeados por Guedes para comandar essas instituições terão a missão de identificar fatias de negócios que possam ser vendidas. Eles serão a extensão do pensamento liberal do guru econômico de Bolsonaro.