Nunca foi tão grande, nunca foi tão rápido, nunca foi tão surpreendente. Sete minutos. Foi esse o tempo entre a abertura do leilão do Banespa e a batida do martelo que selou a maior privatização da história do Brasil. Demorou apenas sete minutos para que o Banco Santander Central Hispano pagasse a estupenda quantia de R$ 7,05 bilhões pelo controle do banco estatal paulista, com um ágio de 281% em relação ao preço mínimo de R$ 1,8 bilhão. A data era 20 de novembro e o local, o pregão da moribunda Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, na Praça 15 de Novembro. Ali, às 10h10 da manhã, sob aplausos de uma pequena multidão de 500 pessoas, encerrou-se uma história que se arrastava num pântano legal desde 1994, quando se decidiu que o ícone paulista da Avenida São João seria vendido. Terminou, é importante sublinhar, de forma totalmente inesperada. Ninguém acreditava que os espanhóis do Santander levariam o Banespa. Ninguém imaginava que eles pagariam o que pagaram. O tempo vai manter registrado o vencedor, a data e a quantia, mas talvez se perca no tempo o gosto do espanto. ?Quando o leiloeiro abriu o envelope e leu o valor do lance deles, pensamos que fosse um erro?, diz o vice-presidente de uma instituição rival do Santander. ?Ficamos esperando a retificação, mas não veio.?

Às 8 horas da manhã da segunda-feira, com os termômetros do Rio marcando 22 graus, não parecia haver espaço para surpresas ao redor da estátua eqüestre do marechal Deodoro da Fonseca. Um contingente de 1.500 policiais, escudados por tapumes e gradis, protegia o perímetro da Praça 15 de possíveis adversários da privatização ? embora o feriado no Rio de Janeiro e a distância de 400 quilômetros entre o local da venda e os principais interessados em impedir o leilão (os funcionários do Banespa) não sugerissem a repetição dos enfrentamentos que marcaram a venda da Usiminas, da CSN e da Vale do Rio Doce. Àquela hora, havia apenas oito manifestantes reunidos na porta da sede carioca do Banespa. Mais gente que isso se juntava na Praça 15 ao redor de Carlos Eduardo de Freitas, o diretor do Banco Central encarregado da privatização. Até 10 minutos antes do leilão ele ainda atenderia, no celular, executivos de um banco paulista com dúvidas de última hora. Mas era 8h15 e Freitas, cercado de microfones, já fumava muito. ?Estamos vendendo um banco pronto para decolar. Vai ser um leilão muito concorrido?, previa o economista.

? Há chance de um estrangeiro levar o Banespa? ? perguntou-lhe o repórter da DINHEIRO.
? Há ? respondeu o diretor do BC, sem pestanejar.

Ele talvez fosse o único a pensar daquela forma. Uma hora e meia antes do leilão, marcado para as 10 horas, todas as atenções na entrada da Bolsa se voltavam aos representantes dos três maiores bancos nacionais ? Bradesco, Itaú e Unibanco ?, para os quais se atribuíam vontade e bala para disputar os 2,8 milhões de clientes do Banespa.

Por volta das 8h30, repórteres e corretores que circulavam perto da mesa de credenciamento, na porta de Bolsa, começaram a se dar conta de um fato que teria importância crucial na próxima hora: todos os bancos habilitados para o leilão já tinham representantes credenciados dentro do prédio da Bolsa. Menos um. Esperava-se ansiosamente que Ronald Anton Jong e Marco Antônio Sampaio retirassem seus crachás. Mas os homens que representariam o Itaú não apareciam. Ambos haviam saído do Softel, na ponta da praia de Copacabana, por volta das 7h10, seguidos pelos editores Biô Barreira e Estela Caparelli, de DINHEIRO. A poucos metros da Bolsa, num lance de filme noir, o carro dos funcionários do Itaú tomou um desvio e desapareceu na zona bancária carioca. Foi o mais perto que o Itaú chegou do leilão. Já o Santander, numa antecipação da determinação que haveria de mostrar mais tarde, tinha seu time de 13 pessoas dentro do prédio da Bolsa desde às 7 da manhã, instalado em uma sala privada. À frente da tropa estava o colombiano Gabriel Jaramillo, presidente do Santander do Brasil, cuja presença chamou a atenção dos concorrentes. Era o único general de quatro estrelas na área. ?O presidente do Santander está aqui?, alarmou-se Sérgio de Oliveira, o homem do Bradesco na Bolsa, falando por celular com a diretoria do seu banco, reunida na Cidade de Deus. Na mesma hora, o representante do Unibanco, Cláudio Coracini, também usava o celular para dar à sua chefia, no quarto andar do prédio da Eusébio Matoso, em São Paulo, um outro elemento do quebra-cabeças: ?O Itaú não veio, nem o Safra. Somos três aqui.?

Eram três, de fato, e isso mudou tudo. A ausência do Itaú, detectada na undécima hora, determinou que o Bradesco perdesse boa parte do interesse na disputa. O banco fundado por Amador Aguiar, na verdade, estava ali para garantir que seguiria sendo o maior do País. Não tinha interesse real no Banespa. Um interlocutor de Lázaro Brandão lembra que, em 1997, o presidente do conselho do Bradesco justificou a compra açodada do BCN com a seguinte frase: ?A tropa estava ferida?, referindo-se à compra do Banerj pelo Itaú e à ameaça implícita de perda de posto. Conclusão dessa fonte: ?Para o Bradesco, a liderança tem uma valor imensurável?.
O outro grande protagonista do leilão, o Unibanco, fez ajustes de última hora no roteiro. Coracini estava desde o início da manhã ao telefone com Pedro Salles, presidente do banco, mas apenas 10 minutos antes do leilão, à luz da ausência do Itaú, recebeu a ordem definitiva sobre qual envelope apresentar. A equipe de Salles imaginou que os competidores apresentariam envelopes com lances próximos ao mínimo, e que o leilão seria decidido nos lances verbais ? sem avançar demais no terreno do ágio. A incógnita que ocupava a equipe do Unibanco nos minutos anteriores ao leilão era a disposição do Bradesco para entrar na disputa de voz. Se eles viessem sem ânimo ? imaginavam ? o Banespa seria do Unibanco. Já o Santander, cujo presidente entrou no pregão às 9h40, visivelmente tenso, não inspirava preocupações. Ninguém imaginava que os espanhóis iriam violar as regras do bom senso, ignorar o comportamento dos adversários e subverter o jogo entrando em campo com seis atacantes. ?Eles foram incrivelmente afoitos?, opina um dos perdedores. ?Sem o Itaú no leilão, era óbvio que o preço não subiria. Oferecer R$ 7 bilhões foi um descalabro.?

Às 10h03, quando o leiloeiro anunciou que receberia propostas, o homem da corretora Santander saltou do espaço reservado aos compradores, onde se encontravam umas 20 pessoas, e entregou seu envelope. ?Eu nem tremi?, diria ele mais tarde. O homem do Bradesco esperou até 15 segundos antes do prazo limite para depositar seu envelope. Ele queria estar seguro de que o Itaú não apareceria do nada para arrebatar o Banespa. A 400 quilômetros dali, em frente à sede do Banespa em São Paulo, funcionários do banco viviam uma emoção diferente. Qualquer que fosse o vencedor do leilão, haveria e haverá mudanças profundas na gestão do banco estatal, que emprega mais e paga mais que seus concorrentes privados. Demissão é uma palavra no horizonte para muita gente. Um especialista opina que para ser lucrativo como os demais ele teria de cortar 45% dos gastos. Por isso tudo, na manhã de segunda-feira os milhares de funcionários do Banespa que ocuparam a Rua João Brícola com faixas de protesto estavam tensos. Oradores do movimento sindical se sucediam ao microfone, mas a atenção estava nos poucos manifestantes que haviam trazido rádios e acompanhavam os eventos na Bolsa do Rio.

Às 10h20, quando João Vaccari Neto, presidente do Sindicato dos Bancários, anunciou a venda do Banespa ao Santander, a explosão de palavras de ordem não impediu que algumas pessoas caíssem no choro. Carmen Lúcia Feitosa foi uma delas. Enxugava os olhos com uma mão enquanto a outra segurava uma plaqueta exibindo o lucro do Banespa. No Rio de Janeiro também houve choros. Simone Reis, que trabalha há 23 anos no Banespa, abraçou-se à filha Gabriela enquanto o rosto se cobria de lágrimas. Simone está a um ano da aposentadoria e teme pelo futuro: ?Estou preocupada com meu emprego?.

Para todos os efeitos, o leilão do Banespa acabou às 10h08, quando Alexandre Frederico Runter, o leiloeiro de 40 anos, abriu o envelope do Santander. Os sete bilhões de reais provocaram duas reações sucessivas. A primeira, de silenciosa incredulidade. A outra, posterior à confirmação da proposta nas telas do sistema eletrônico da Bolsa, de agitação e euforia. Uma onda de eletricidade percorreu o pregão antes que se lesse a proposta do Unibanco ? R$ 2,1 bilhões ? e transformou-se em desapontamento quando o Bradesco ofereceu apenas R$ 1,8 bilhão. Era 10h10 e o Banespa tinha um novo dono. Quase uma hora depois dos abraços da vitória, Jaramillo e sua equipe ainda riam sem parar durante a entrevista que deram no auditório da Bolsa. As frases mais repetidas pelo executivo foram: ?Estoy muy contento? e ?Estamos neste barco há poucos minutos e ainda há muito que decidir.? Muito mais ele não disse.? Às 11h30, quando saiu, apressado, em direção ao aeroporto Santos Dumont, ele deixou atrás a certeza de que a marca Banespa vai continuar ? e que o Santander pretende fazer seu novo negócio crescer: ?Ninguém compra um banco como o Banespa para fechar coisas, mas sim para fazer coisas?. Às 13h10 Jaramillo embarcou de helicóptero para São Paulo, em companhia de executivos do Banespa. Chegava ao fim uma odisséia pública e começava outra, privada.

Colaboraram: Ernesto Bernardes, Estela Caparelli, Lucia Kassai e Luciano Dias