Inspirada em ensaios que ganharam o Pulitzer, “Projeto 1619″ argumenta que escravidão foi motivo central da Revolução Americana, que derrotou os colonizadores britânicos. Para críticos, um revisionismo incorreto.”Os primeiros africanos escravizados foram trazidos para cá há mais de 400 anos. Desde então, nenhuma parte da história da América não foi tocada pelo legado da escravidão”, diz a jornalista Nikole Hannah-Jones na introdução da série documental O Projeto 1619 – referência ao ano em que os primeiros escravos chegaram aos Estados Unidos.

A série é uma adaptação de ensaios publicados em 2019 com o mesmo título na The New York Times Magazine, que renderam a Hannah-Jones um prêmio Pulitzer. Produzida por Oprah Winfrey, ela foi lançada nesta quinta-feira (26/01) nos Estados Unidos, na plataforma de streaming Hulu.

Os episódios complementam os ensaios originais, com esquetes sobre a vida atual dos afro-americanos, abordando desde a posição dos trabalhadores negros na luta pela sindicalização em armazéns da Amazon à incapacidade das mães negras de ter acesso a serviços de saúde adequados devido ao racismo.

Como os ensaios que a inspiraram, a série se concentra na própria herança afro-americana de Hannah-Jones. Seu pai, que descende de escravos e foi criado no “Estado do apartheid” do Mississippi, serviu ao Exército nos anos 60 com a expectativa que “seu país pudesse finalmente tratá-lo como um americano”.

Isso não aconteceu, e ele seguiu trabalhando no setor de serviços durante toda a vida. No entanto, continuou sendo um patriota orgulhoso que sempre hasteava a bandeira dos EUA no jardim em frente à sua casa.

Enquanto isso, a então jovem Hannah-Jones rejeitava essa identidade. “Não entendia como ele podia demonstrar com tanto orgulho seu patriotismo por um país que o havia tratado tão mal”, diz ela na série. Mais tarde, ela concluiu que seu pai era a verdadeira encarnação do sonho americano.

“Nosso sangue, suor e lágrimas estão neste solo”, afirmou. “Meu pai sabia que ninguém tem mais direito a esta bandeira do que nós, porque lutamos por ela da maneira mais difícil.”

Donald Trump lidera reação conservadora

Hannah-Jones recebeu muitos elogios por sua tese sobre os 400 anos de história da escravidão americana e suas consequências sócio-econômicas, mas seu argumento de que a escravidão teve um papel fundamental na construção da nação americana tem sido questionado pela direita e pela esquerda.

Para a esquerda, a tese geral é correta, mas algumas conclusões, especialmente sobre o papel da escravidão na Revolução Americana, ocorrida de 1765 a 1791 e que derrotou os colonialistas britânicos, ganhou peso excessivo – uma crítica que Hannah-Jones aceitou.

Enquanto isso, a extrema direita, incluindo o então presidente Donald Trump, rebelou-se contra essa releitura da história americana, e ligou o Projeto 1619 ao movimento da teoria crítica da raça, seu mais recente alvo da guerra cultural.

“O Projeto 1619 e a cruzada contra a história americana é propaganda tóxica”, disse Trump durante um comício em 2019.

Ele então ameaçou cortar o financiamento para escolas na Califórnia que ousaram incluir o tema no currículo, depois que o New York Times anunciou planos de disponibilizar materiais sobre o Projeto 1619 para instituições educacionais.

Em resposta ao argumento de Hannah-Jones, de que a Independência Americana foi declarada em 1776 em boa medida para manter a escravidão – em oposição ao tradicional relato da busca por liberdade – Trump estabeleceu o agora extinto Projeto 1776 para reafirmar a ortodoxia histórica por meio da “educação patriótica”.

Para Hannah-Jones, tratou-se de uma decisão política. “A questão controversa mais antiga na América é a raça”, disse ela em uma entrevista à rádio NPR.

Questões sobre o papel da escravidão

Mas historiadores da linha mais tradicional e da esquerda também questionaram o argumento de que a Revolução Americana teria sido em grande parte promovida para manter a escravidão, já que os colonialistas ingleses queriam abolir a prática.

Pascal Roberts, um analista sobre política negra baseado na Califórnia e co-apresentador do podcast This is Revolution disse que o Projeto 1619 é uma “polêmica” e não é baseado na “história real”.

Ele lembrou do genocídio da população indígena, da escassez dos direitos das mulheres e do limitado direito ao voto dos homens brancos após a Revolução de 1776, apontando que o projeto carecia de uma análise de classe mais ampla sobre a opressão no capitalismo americano.

Cinco historiadores também escreveram em 2019 uma carta aberta ao The New York Times elogiando “todos os esforços para abordar a centralidade duradoura da escravidão e do racismo em nossa história”, mas apontando “erros factuais no projeto e no processo que o criou”.

Eles disseram que a alegação do projeto de que as 13 colônias americanas sob domínio britânico lutaram uma Guerra de Independência para manter a escravidão é simplesmente “não verdadeira” e pediram que fosse emitida uma correção.

O editor da New York Times Magazine, Jake Silverstein, recusou, respondendo que “o entendimento histórico não é fixo”.

Logo depois, a historiadora afro-americana Leslie M. Harris revelou que foi consultora do Projeto 1619 e tinha “vigorosamente argumentado contra” a ideia de que a Revolução Americana tivesse ocorrido em grande parte para preservar a escravidão.

Em um artigo no site Politico, ela disse que, apesar de Hannah-Jones ter continuado a repetir essa afirmação, o Projeto 1619 continua sendo um “corretivo muito necessário” para reorientar o olhar sobre as raízes negras na América.

No entanto, ela disse temer que, ao ignorar seus conselhos, os editores abrissem a porta para os críticos “usarem as afirmações exageradas para desacreditar todo o projeto”.

Série lançada em meio a veto a curso afro-americano

Enquanto os políticos republicanos radicais escalavam a sua guerra cultura contra a teoria crítica da raça e a ideia de que o racismo sistemático ajudou a moldar a sociedade nos EUA, o governador da Flórida, Ron DeSantis, proibiu na semana passada o ensino de um curso afro-americano nas escolas do estado.

Isso ocorreu após tentativas de proibir que as escolas incluíssem em seu currículo o romance premiado com o Pulitzer de Toni Morrison, Beloved, que explora o impacto da escravidão em uma família afro-americana após a Guerra Civil Americana.

Diante desse movimento de censura da extrema direita e das críticas atuais ao seu método histórico vindas de todo o espectro político, Nikole Hannah-Jones está determinada a continuar com seu trabalho.

“Você pode proibir o que alguém pode aprender em uma sala de aula, mas não pode impedi-los de assistir a esta série documental e obter essa informação, então ela está realmente chegando em um momento crítico”, disse ela nesta semana.