Um fenômeno jamais visto em eleições presidenciais foi registrado na semana passada no Brasil. Pela primeira vez, através de ações e discursos abertos, um candidato foi ungido pelo mercado como alternativa a um suposto caos ? montado artificialmente nas mesas de operação de grandes instituições financeiras e fundos de investimento internacionais. José Serra, o candidato do governo e ex-ministro da Saúde, foi sagrado como a única solução possível para evitar a argentinização do Brasil, em plena crise de nervos no mercado. Na segunda-feira 10, no Rio de Janeiro, o próprio Serra, sem qualquer desconforto, vestiu a camisa de salvador da pátria. ?Somos a única força política capaz de preservar a estabilidade?, decretou, durante a cerimônia de lançamento da candidatura de Solange Amaral ao Palácio da Guanabara. Em entrevista exclusiva à DINHEIRO (leia na página 32), o presidenciável reforçou a tese. ?Somos mais competentes.?

Mas, afinal, que plano mágico teria o candidato Serra capaz de, ao mesmo tempo, seduzir o mercado financeiro e ser percebido como uma proposta redentora por grandes grupos industriais? Sua fórmula pode ser resumida num tripé: metas de inflação, ajuste fiscal e prioridade total às exportações num regime de câmbio flutuante. Não é nada muito diferente da política econômica atual e até mesmo das propostas levantadas por seus opositores na disputa sucessória. Serra apenas se coloca como alguém capaz de acelerar o processo de estabilização e de reformas, contando com mais credibilidade do que os rivais. ?Sou ao mesmo tempo o candidato do governo e da mudança?, diz ele. O candidato tucano dirige sua plataforma econômica na direção do que ele entende ser o sentimento nacional. O Brasil, afirma, quer manter as conquistas atuais e gerar mais crescimento econômico, mas sem correr riscos da instabilidade desnecessários.

Do ponto de vista do mercado financeiro, a grande percepção de risco emana da dívida pública e das dúvidas que cercam o seu manejo pelo próximo presidente. Foi com base na necessidade de rolar essa dívida de R$ 680 bilhões, e nas dificuldades que podem se apresentar, que o especulador George Soros cunhou o bordão ?Serra ou caos?. Apenas o candidato do PSDB, disse Soros, conseguiria atrair a boa vontade e os créditos financeiros de que o Brasil necessita para rolar seus compromissos financeiros. Mas o que afirma o candidato Serra a respeito dessa questão? ?Com um governo com credibilidade, haverá um alongamento natural dos prazos de pagamento?, afirma. Está claro, portanto, que ele pretende alongá-la naturalmente. ?Todas as conversas sobre reestruturação de dívida na verdade envolvem a perspectiva de calote. São versões do Plano Collor?, afirma. DINHEIRO também ouviu os demais candidatos e todos eles — Luiz Inácio Lula da Silva, Anthony Garotinho e Ciro Gomes — disseram coisa semelhante. Querem prazos mais longos e juros menores, desde que isso venha em comum acordo com os credores.

 

 

“SOMOS MAIS COMPETENTES”

Anderson Schneider 
Programa Parecido? Serra também quer alongar a dívida, mas isso não é visto como calote 

O candidato José Serra viveu uma semana ambígua. No campo político, conquistou apoios partidários e consolidou-se em segundo lugar. Mas na área econômica, com a crise instalada no País, foi acusado de usar uma estratégia ?terrorista? para subir nas pesquisas. A seguir, sua entrevista à DINHEIRO.

Dinheiro ? Só Serra salva?
SERRA ? Em relação à estabilidade econômica, somos a força mais competente para mantê-la. A oposição se diz capaz de solucionar todos os problemas brasileiros, até numa perspectiva messiânica. Ninguém vê problema nisso, mas quando o PSDB mostra uma ponta de orgulho, dizem que é terrorismo. Não entendo.

Dinheiro ? George Soros disse que ?é Serra ou o caos?.
O sr. concorda?
SERRA ? Soros é um estrangeiro, não vota no Brasil. Ele deu sua opinião e creio que ele próprio reconhecerá que foi uma declaração inoportuna.

Dinheiro ? A crise é boa para a sua candidatura?
SERRA ? Nunca uma crise, ou eventual crise, pode ser boa para alguém. Penso assim.

Dinheiro ? A situação está fora de controle?
SERRA ? De jeito nenhum. Fala-se muito da dívida doméstica, até com dados falsos. Ciro diz que ela cresceu dez vezes, o que é mentira. A dívida, num contexto de crescimento e redução do déficit externo, é perfeitamente manejável.

Dinheiro ? Mas o mercado recusa comprar títulos públicos…
SERRA ? O encurtamento de prazos é natural, devido às ansiedades do processo eleitoral.

Dinheiro ? Voltar ao FMI foi uma boa decisão?
SERRA ? Recorrer aos US$ 10 bilhões aos quais o Brasil tem direito, ampliar a possibilidade de se utilizar reservas e uma pequena ampliação no superávit primário são medidas corretas para combater os efeitos da tensão eleitoral.

Dinheiro ? O candidato do PT acha que essa tensão vai sendo fabricada pelo governo…
SERRA ? Pensar assim é tentar montar uma fantasia eleitoral. Não há ninguém mais empenhado em evitar uma crise do que o presidente Fernando Henrique e o ministro Pedro Malan.

Dinheiro ? Muitos dizem que quanto maior a crise, maiores são as suas chances na eleição. O sr. crê nesta tese?
SERRA ? Não. Se a gente for analisar todas as coisas que são ditas, não faríamos outra coisa. Você está interessado apenas em tititi.

Dinheiro ? O plano dos economistas Bresser Pereira e Yoshiaki Nakano, do PSDB, diz que o correto é aumentar o superávit fiscal e desvalorizar mais o real para corrigir o balanço de pagamentos. O que o sr. acha desse plano?
SERRA ? Não li o plano Bresser-Nakano, nem acompanhei debates econômicos dentro do PSDB sobre ele. O que eu apresentei como programa foi apresentado na reunião do BID, no começo de abril. Lá está definido o tripé responsabilidade fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação.

Dinheiro ? O sr. permitiria uma desvalorização maior para impulsionar as exportações?
SERRA ? Você está querendo que eu diga que vou desvalorizar a moeda, mas eu não vou entrar nisso. Você quer uma declaração sensacional sobre o assunto.

Dinheiro ? O sr. pode abandonar o regime de metas
de inflação?
SERRA ? Nunca ouvi ninguém dizer que eu abandonaria o regime de metas de inflação. Eu concordo com ele.

Dinheiro ? O que o sr. fará com a dívida interna?
SERRA ? Depois da eleição, com um governo que tenha credibilidade e um programa macroeconômico coerente, haverá um alongamento natural. Todas as conversas sobre reestruturação de dívida na verdade envolvem a perspectiva de calote. São versões do Plano Collor, enquanto o alongamento natural é natural.

Dinheiro ? Há necessidade de aumento do superávit
primário em 2003?
SERRA ? Creio que a nova meta de 3,75% do PIB será suficiente.

Dinheiro ? Se o sr. ganhar, por onde vai começar o
trabalho na economia?
SERRA ? O que nós vamos fazer é uma concentração de todos os esforços na questão do comércio exterior e das exportações. Eu sou candidato do governo e candidato da mudança. É isso o que a população brasileira quer: mudança com segurança. O Brasil quer mais.

Dinheiro ? A eleição já está polarizada entre o sr. e o
candidato Lula, do PT?
SERRA ? Isso não cabe a mim julgar, mas se você me perguntar quem deve ir para o segundo turno o meu palpite é o de que iremos Lula e eu.

Se é assim, por que será que toda vez que a oposição aborda o tema da dívida pública, esse mesmo mercado financeiro, que acata em silêncio as palavras de José Serra, entra em parafuso? ?Tenho mais credibilidade?, presume o candidato tucano. É uma impressão reforçada por expoentes do mundo financeiro, mesmo aqueles que enxergam em Serra um homem muito mais intervencionista do que o presidente Fernando Henrique. ?De todos, ele é o mais preparado?, afirma Álvaro de Souza, ex-presidente do Citibank e presidente da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. ?Mas estamos conscientes de que não haverá tanta liberalização quanto no governo FHC.? Ou seja: não é segredo para ninguém que, em um eventual governo Serra, haverá uma mão mais pesada na administração da economia. Mas isso extrai-se da biografia do candidato mais do que da sua plataforma. Vista de perto, a proposta econômica de Serra, pelo menos em sua parte pública, é tão genérica quanto a dos outros candidatos. O ex-ministro repudia qualquer vínculo com o projeto Bresser-Nakano, um denso documento econômico gestado no PSDB que prega mais desvalorização e aprofundamento do ajuste fiscal. ?Nem cheguei a ler?, diz Serra. O fato é que, com ou sem programa detalhado, ele parece contar com um diferencial: uma relação pessoal de confiança com os homens que comandam o mundo financeiro e que podem, com seus movimentos abruptos e muitas vezes irracionais, atirar o País ao precipício.

Na semana passada, quando o cenário econômico ameaçou desabar sobre a cabeça dos brasileiros, difundiu-se a sensação de que a crise era alimentada em parte pelo PSDB, cujo candidato parece se beneficiar do medo do caos. Em relação às insinuações de que a instabilidade econômica poderia beneficiá-lo, Serra é seco. “Nunca uma crise pode ser boa para alguém”, disse. Lula, que também foi associado ao caos por líderes tucanos como José Aníbal e Pimenta da Veiga, usou uma imagem agressiva. Comparou o caso a um Riocentro econômico, avisando que a bomba da crise poderia explodir no colo do atual governo. Existe nas hostes da oposição a sensação de que o governo disseminou a idéia da crise e perdeu o controle sobre ela, atirando o País à confusão. A verdade é que a fogueira, qualquer que seja a sua origem, se alastrou e, quando a crise parecia em rota própria, o ministro Pedro Malan e o presidente Fernando Henrique tiveram que entrar em ação para esfriar os ânimos. O Brasil voltou ao Fundo Monetário Internacional, ampliou sua munição em US$ 15 bilhões e, na sexta-feira 14 completou o pacote exigindo um maior recolhimento compulsório dos bancos, de 10% para 15% nos depósitos a prazo, de forma a reduzir a pressão sobre o dólar. ?Foram todas medidas acertadas?, disse Serra, que passou o resto da semana em Brasília, com um olho na crise e outro na sua aliança política, que recebeu adesões de peso vindas de partidos como o PFL e o PPB. Serra até fez uma concessão àquele que, não muito tempo atrás, era seu grande rival nos bastidores do governo. “Não há ninguém mais empenhado em evitar uma crise do que o ministro Pedro Malan”, disse. Ficou claro que, mais do que nunca, Serra quer distanciar-se da imagem de alguém que, assim como Soros e seus asseclas, também lucrou com o caos. Como postura política é irretocável, mas o fato expresso na mais recente pesquisa de intenção de voto ? ISTOÉ/Toledo & Associados, divulgada na sexta-feira 14 ? é que Serra voltou a crescer e consolidou-se na segunda posição, na mesma semana em que o Brasil voltou ao Fundo.