Defensor da cautela nos estudos da vacina para a Covid-19, o principal executivo do grupo farmacêutico francês no Brasil afirma que não há qualquer evidência sobre a hidroxicloriquina.

Há 18 meses comando do laboratório francês Sanofi no País, Felix Scott atravessa a maior prova de fogo de sua trajetória de mais de três décadas na indústria de medicamentos e vacinas. Depois de passar por países como Venezuela (sua pátria-mãe), Canadá e México, ele desembarcou em São Paulo para acelerar as estratégias de expansão dos negócios locais da companhia, peça-chave de um colosso industrial que faturou 36,1 bilhões de euros globalmente no ano passado. Mas a Covid-19 impôs novos desafios e injetou adrenalina na rotina do setor farmacêutico. “Com a pandemia, todos enxergaram o real valor da inovação e da pesquisa”, afirmou Scott nesta entrevista à DINHEIRO. “Como as necessidades de saúde pública são maiores do que os recursos, respeitar e seguir a ciência se tornaram fundamentais”, disse o executivo, antes de destacar o orçamento anual de 6 bilhões de euros da companhia para pesquisa e desenvolvimento de novos remédios. Para ele, tão importante quanto combater o novo coronavírus é dedicar mais atenção às doenças que levam os pacientes a situações de risco, como diabetes, colesterol e problemas cardíacos.

DINHEIRO – A Sanofi tem investido recursos e tempo em pesquisas sobre a hidroxiclorina. Afinal, ela funciona ou não?
FELIX SCOTT – Realmente estamos investindo muito nisso. O que posso dizer é que não temos evidência suficiente para afirmar ou negar a efetividade da hidroxicloroquina no combate à doença. Ainda não temos uma posição sobre o assunto. Daqui dois ou três meses, talvez possamos afirmar.

Por que, mesmo sem estudos conclusivos, o medicamento é tão defendido?
Porque, no começo, algumas pesquisas observacionais, que não são estudos controlados, com casos pequenos, mostraram que havia benefício. Mas esses estudos não são suficientes. Temos que aplicar um estudo científico, estudos controlados. É o que fazemos. Por isso, até o momento, não temos qualquer evidência estatística e significativa em estudos controlados, com grandes grupos de pacientes, que mostrem algum benefício. Mas vamos continuar investindo e trabalhando com pacientes que estão com enfermidade, avaliando os resultados por idade, pelo estágio da doença, e com quem está na UTI.

Por que a conclusão demora tanto?
O recrutamento de pacientes não é fácil. No Brasil, estamos sendo muito mais rápidos do que em todo o mundo. Nos países europeus já não temos como terminar os estudos por falta de pacientes.

Além dos estudos sobre a hidroxicloroquina, qual a estratégia da Sanofi no combate à Covid-19?
Primeiro, a prioridade é com nossos colaboradores em todo o mundo. Segundo, garantir o fornecimento dos medicamentos para outras doenças atuais. Terceiro, o desenvolvimento da vacina. Fizemos uma parceria com a GSK que nos permite produzir até 1 bilhão de doses de vacinas. A demanda vai ser muito grande. O importante é termos uma vacina efetiva e segura. Ao mesmo tempo, temos de garantir a capacidade de produção. Somos os maiores do mundo e temos essa capacidade.

Quando será possível produzir esse volume de 1 bilhão de doses?
Já estamos prontos. A companhia está tomando risco de fabricar antecipadamente, mesmo sem ter completado os estudos. Temos de produzir desde já para garantir que, no momento que tivermos a aprovação, já tenhamos estoque para começar a distribuir em todo o mundo. Isso é fundamental. As pesquisas estão correndo ainda, não temos resultados. Mas as primeiras impressões foram importantes.

“A Sanofi tem uma posição: trabalhar com evidências científicas. Temos de ter responsabilidade com os pacientes e com a comunidade médica” (Crédito:Divulgação)

Essas vacinas serão distribuídas amplamente no Brasil?
Serão. No Brasil, temos parceria com o Instituto Butantan, onde já produzimos vacinas contra a influenza. Temos também parceria com a Fiocruz para produção de vacinas contra a poliomielite e de um grande portfólio de vacinas infantis. Estamos fazendo investimentos com parceiros para a vacina do coronavírus. Na França, fizemos um investimento grande para ampliação de uma fábrica de vacinas.

A politização da pandemia no Brasil, nos EUA e em vários países do mundo que negaram a ciência, prejudicou, de alguma forma, o esforço em pesquisa?
A Sanofi tem uma única posição: trabalhar com evidências científicas. Para nós da indústria farmacêutica seria muito bom se tivéssemos um medicamento já desenvolvido que potencialmente poderia ser uma terapia para essa doença. Mas temos de ter responsabilidade com os pacientes. Temos de ter responsabilidade com a comunidade médica, que confia nas nossas decisões nesse campo.

Laboratórios chineses e, mais recentemente, uma empresa russa, já afirmam ter uma vacina pronta. Estão blefando?
A Sanofi investe 6 bilhões de euros anualmente em pesquisas. Com a pandemia, fizemos investimentos adicionais. Foram mais de 100 milhões de euros em novas pesquisas clínicas. No Brasil, temos um centro de desenvolvimento, uma grande fábrica e mais de 70 projetos em curso. Também ajudamos a financiar pesquisa de terceiros. Mas só teremos vacina quando os estudos estivem concluídos e as autoridades liberarem a distribuição.

Então podem existir riscos nessas vacinas que se dizem prontas para uso em massa?
Olha, existem mais de 100 vacinas sendo desenvolvidas em todo o mundo. Os especialistas estão dizendo que 20 dessas vacinas vão ser aprovadas. Para nós, da Sanofi, não vamos comprometer nenhuma qualidade, nenhuma segurança para os pacientes. Nosso foco é não oferecer nenhum risco, e dar a melhor vacina possível para os pacientes. O plano é chegar ao mercado no ano que vem. Mesmo assim, já estamos respondendo rápido. Vamos trabalhar sobre uma plataforma que já conhecemos, a de proteína recombinante da vacina da influenza. É uma vacina segura.

Mas se a Sanofi já está produzindo e estocando, essas vacinas são seguras…
Sim. Tomamos o risco de ter muitas doses prontas para os pacientes. Se a vacina não resultar positiva e efetiva, perderemos toda essa produção. É aí que estamos correndo risco. O mesmo que fizemos com a hidroxicloroquina, um remédio muito antigo. Agora, nossa intenção é ter uma vacina efetiva e segura para os pacientes.

A Sanofi, assim como toda a indústria farmacêutica, não estava pronta para enfrentar uma pandemia como essa?
É muito difícil estar preparado para um vírus específico. Não se sabe qual vírus vai mutar, qual vai atingir os humanos e qual pode virar uma pandemia. A indústria farmacêutica tem respondido em tempo recorde. Acreditávamos estar preparados no sentido de que temos muitas pesquisas, muitas investigações. O fundamental dessa pandemia são aprendizados.

Quais são os principais aprendizados?
Primeiro, que temos de ter controle das doenças nos pacientes. Nunca se sabe qual será a próxima ameaça externa e como essas doenças preexistentes podem agravar a situação. Temos de trabalhar mais com aqueles que convivem com o diabetes, com doenças crônicas e os imunodeprimidos. Esse é um desafio não só da indústria farmacêutica, mas de todos os sistemas de saúde. É fundamental que trabalhemos juntos para ter um sistema de saúde forte que vai garantir a saúde dos brasileiros. Temos toda a inovação que é necessária para ter esse controle. O segundo aprendizado é o valor da inovação, o valor da pesquisa. Por muitos anos, essa visão estava comprometida. Nunca houve tanta consciência social e política sobre a importância da saúde. Ficou claro a todos que, sem saúde, não existe economia saudável.

Os investimentos dependem mais do governo ou das empresas?
A solução da crise está na união de público e privado. A importância da inovação nos sistemas de saúde e saúde pública é fundamental. Temos de trabalhar juntos. Unir a indústria farmacêutica aos governos estaduais e federais. Trabalhar juntos para fortalecer esse sistema de saúde, para garantir que estamos prontos para responder não somente uma pandemia, mas também em condições normais. Os pacientes com doenças controladas podem enfrentar melhor uma situação de pandemia. A inovação vai fazer a diferença no futuro.

“Não podemos dizer que a responsabilidade é só do governo. Temos muitas corresponsabilidades. A solução da crise está na união de público e privado” (Crédito:Divulgação)

Por que muitos governos não tiveram essa mesma visão?
É o impacto da economia, principalmente. Mas não há como proteger a economia sem proteger as pessoas. Como disse, sem saúde não existe economia saudável. Se não tomarmos essa lição, estamos perdendo a chance de aprender com a pandemia.

O governo brasileiro falhou nisso?
Não podemos dizer que a responsabilidade é só do governo. Temos muitas corresponsabilidades. Temos de empoderar mais os pacientes para que eles entendam quais são as consequências de suas doenças e possam se proteger. Eu não gostaria de fazer uma avaliação da política dos governos, do comportamento dos governos. Acho que nosso foco fundamental é garantir que a nossa atividade no Brasil esteja sempre baseada nas pesquisas clínicas e no conhecimento científico. Esse é nosso campo de ação. Essa é a nossa especialidade. Queremos atuar com o governo com as nossas informações.

A Sanofi fornece medicamentos para o governo?
Sim. Cerca de 30% da nossa produção no Brasil vai para o sistema público de saúde. Com uma vacina nova, seguramente vai aumentar essa porcentagem. E vamos continuar aumentando no futuro. Trabalhando juntos teremos um sistema de saúde forte. As necessidades estão crescendo exponencialmente. Então, como vamos atender à demanda diante de recursos limitados? Aí entra a inovação. Temos de ser muito mais eficientes a cada dia.

Qual será a principal mudança de hábito pós-pandemia?
Com certeza haverá mais consciência sobre a saúde. As pessoas serão mais preventivas. Com os pacientes mais empoderados de suas doenças e usando também mais sistemas digitais, haverá uma jornada de mudança para telemedicina. Fomos forçados pela pandemia a usar novas tecnologias. O teletrabalho e as conexões digitais mudarão rapidamente a vida das pessoas.