As dimensões continentais do Brasil permitiram ao País criar, ao longo de décadas, um parque industrial voltado a atender o consumo interno. Os calçadistas nacionais destinam hoje quase 90% da produção ao varejo brasileiro, um volume suficiente para colocá-los no posto de quarto maior fabricante global. Ao todo, são 7 mil empresas, 280 mil funcionários e um faturamento anual de R$ 21 bilhões. Por trás dos números, porém, há uma mãozinha na competição local: estrangeiros que queiram vender sapatos por aqui terão embutido no preço 35% de Imposto de Importação, o máximo autorizado pela Organização Mundial de Comércio (OMC). Para liberais como o ministro da Economia, Paulo Guedes, trata-se de um protecionismo que afeta a economia e que precisa mudar. “Temos de nos integrar às cadeias globais de produção”, afirmou Guedes em evento recente a empresários. “Nosso lema interno é sem recuo e sem rendição.”

Não à toa, a palavra de ordem lembra um combate. A abertura comercial é historicamente tabu entre industriais brasileiros. Sempre houve muita pressão para frear iniciativas liberalizantes, por temor de uma quebradeira generalizada e o aprofundamento do processo de desindustrialização. Para vencer as resistências, Guedes promete entregar uma redução dos custos de produção interno capaz de compensar a queda nas tarifas e um cronograma gradual de abertura. “Vamos abrir devagarzinho porque não queremos desmontar nada do que temos”, afirma o ministro.

A previsão é reduzir a tarifa média dos importados dos 14% atuais a 4% no final do mandato, em linha com a média mundial. Parece pouco, mas envolverá mudanças profundas. No setor calçadista, a alíquota cairá 20 pontos, para 15%. Os cortes começam com menos intensidade nos primeiros anos e adquirem mais impacto no final, quando, em teoria, a indústria já estaria mais preparada para a mudança. “Vamos abrir exponencialmente em vez linearmente”, afirma Lucas Ferraz, Secretário de Comércio Exterior. No plano de abertura do governo Temer, a queda seria linear, de 2,5 pontos percentuais por ano, até a meta dos 4% de tarifa média. Entre os benefícios apontados em estudos sobre o tema, estão maior competitividade, redução de preços, maior variedade de produtos e melhor qualidade de serviços. Uma simulação feita pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) do governo Temer indicou um potencial de queda nos preços de até 16%.

Receio: o setor automobilístico já passa por mudanças com o acordo de livre comércio entre Brasil e México, que entrou em vigor em março. As montadoras pedem “igualdade de condições” (Crédito:Moacyr Lopes Junior/Folhapress)

O Brasil tem hoje uma das economias mais fechadas do mundo. A soma de importações e exportações é equivalente a menos de 25% do PIB. No Chile, visto como referência por Guedes, o índice é de 65%. A indústria local vem se mostrando mais aberta ao tema, mas cobra a contrapartida do governo. Nos setores mais resistentes, ainda há o temor do desemprego. “Se somente a alíquota sobre o produto pronto que entrar cair, a indústria nacional morre”, diz José Velloso, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). “Deve cair também o custo Brasil.” Com alíquotas entre 14% e 16%, a indústria de bens de capital emprega 1,8 milhão de trabalhadores, distribuídos em 8 mil empresas.

O outro lado da estratégia do governo inclui esforços para simplificar o pagamento de tributos, desburocratizar a atividade econômica e reduzir juros. São promessas comuns a outros governos e de difícil implementação. Os produtores locais lembram de outros cuidados para tornar o processo de abertura viável. É preciso olhar toda a cadeia dos produtos para que a alíquota de importação de uma determinada peça em um maquinário, por exemplo, não seja maior que aquela que protege o equipamento final. “Perderíamos uma proteção, mas o nosso produto ficaria mais competitivo”, afirma Heitor Klein, diretor-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados). “Uma coisa compensa a outra.”

LIVRE-COMÉRCIO Quase que por acaso, o processo de abertura já começou. O fim de um acordo que previa cotas de importação de veículos do México, em março, fez o governo resistir à pressão das montadoras para estender a restrição no comércio com o parceiro. Em vez disso, a equipe econômica decidiu aproveitar a entrada em vigor do livre-comércio do setor. Até hoje, esse prazo vinha sendo constantemente ampliado de forma a nunca chegar à tarifa zero. Com custos de produção mais competitivos que o Brasil, o México é um forte concorrente pelos recursos de produção das montadoras globais. Foi assim que surgiu o sistema de cotas, para proteger as operações brasileiras na época em que o dólar rondava a cotação de R$ 2,00, no início da década.

As montadoras ainda negociam com a equipe econômica para rever a medida. Numa outra ponta, segundo apurou DINHEIRO, elas devem aproveitar a direção da equipe de Guedes para tentar emplacar o livre-comércio de veículos com a Argentina, que também vem sendo constantemente adiado. O país é o principal destino das exportações do setor, responsável por 60% das vendas externas. Pelas regras atuais, para cada US$ 1,5 que o Brasil exporta para a Argentina, o País é obrigado a comprar US$ 1 em contrapartida. Ou seja, mesmo que dobrássemos as exportações de carros para lá, estaríamos atrelados a comprar de volta dois terços de produtos argentinos. A restrição ficará menor a partir de meados deste ano e acabará completamente em 2020, quando passa a valer o livre-comércio. Como o Brasil leva vantagem, a pressão deve vir dos argentinos.

No setor automotivo, prevalece a lógica de cautela. “Quando falamos de competitividade, precisamos de condições iguais, com reduções tributárias, melhor infraestrutura e desburocratização”, afirma Marco Silva, presidente da Nissan Brasil. “Vejo com bons olhos a abertura, mas há muito a se fazer ainda no Brasil.” A montadora japonesa foi uma das principais afetadas pelas cotas com o México no passado. O setor também avalia com atenção outra frente do plano de abertura: o avanço de acordos bilaterais – o que não quer dizer um abandono ao Mercosul. “O País usará a união regional para fazer acordos específicos com outras localidades e não usar arenas multilaterais”, afirma Welber Barral, ex-secretário do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e cofundador da BMJ Consultoria. Entre os possíveis mercados estão a União Europeia, Coreia do Sul e Canadá. O Brasil pretende ainda criar uma nova Tarifa Externa Única, que é a taxa cobrada para importações de países fora do Mercosul e que não estejam contemplados por acordos bilaterais. É uma batalha e tanto no caminho de Guedes.