A calma contrastava com a correria de qualquer restaurante quando o serviço estava a pleno vapor. Em vez de cozinheiros se desdobrando para atender aos pedidos dos garçons, o que se via, na véspera do feriado de 1º de maio, eram preparativos para testar a saúde da brigada. “Fizemos o teste de Covid-19 em 119 funcionários˜, afirmou o empresário Sylvio Lazzarini, dono da premiada rede Varanda Grill, com três endereços em São Paulo. Embora tenha mantido o funcionamento de forma parcial para atender aos clientes pelo sistema de entregas, ele aguardava ansioso a reabertura dos salões, programada para o dia 11 de maio. “Se permitirem”, ponderou. A data havia sido anunciada pelo governo paulista quase um mês antes. Na quinta-feira 7, uma nova previsão seria divulgada. “Confiamos que as medidas adotadas pelo governo e pela prefeitura terão o efeito de salvar vidas e recuperar a atividade econômica no curto prazo”, disse Lazzarini.

Assim como ele, a maior parte dos empresários do ramo perderam clientes e receitas com a adoção do isolamento social. Agora, temem que os fregueses não deem as caras tão cedo. “Na reabertura, vamos operar com uma ocupação menor. Haverá menos disponibilidade de recursos e mais preocupação com a saúde”, afirma Cristiano Melles, presidente da Associação Nacional de Restaurantes (ANR), e sócio da rede Pobre Juan. Ele prevê que o setor opere com prejuízos por um ano. Isso, para os que sobrevivm aos próximos meses. Segundo pesquisa da ANR, que representa 9 mil pontos comerciais no Brasil, um em cada cinco estabelecimentos poderá sucumbir à pandemia (leia mais à página 42). Com faturamento de R$ 400 bilhões em 2019, o setor de restaurantes empregava 6 milhões de pessoas no Brasil antes do início do isolamento social.

VOUCHER SOLIDÁRIO: Com seu restaurante na turística Serra da Mantiqueira fechado e sem opção de delivery, Anouk Migotto aderiu a um programa em que os clientes antecipam o pagamento do que poderão consumir após a reabertura.Dez por cento do valor vai para entidades beneficentes . (Crédito:Divulgação)

De acordo com os dados da ANR, um milhão de trabalhadores foram desligados apenas em março e abril. O número tende a crescer. “Nossa primeira preocupação é o emprego. A Medida Provisória dos salários não deu a ajuda necessária“, afirma Melles. “Esse é um setor em que muita gente está em sua primeira ocupação”. E boa parte está no primeiro empreendimento, o que significa pouco capital de giro ou baixíssimas condições de contrair empréstimos. Sem clientes, sem receitas. Segundo Melles, nenhuma folha de pagamento vencida até antes do dia 5 de maio havia sido coberta pelo governo, o que obrigou os empresários do setor a arcar com as despesas de pessoal com recursos próprios. Não espanta que até 15 de abril mais de 10% haviam encerrado o negócio e demitido todos os funcionários. Dos que seguem tirando dinheiro do bolso, 75% afirmaram precisar recorrer à MP dos salários para honrar a folha de pagamentos. Acordos sindicais e empréstimos bancários são alternativas apontadas pelos demais. Sem a receita das vendas, também não há dinheiro fácil à disposição nos bancos.

“Eu me qualifiquei para todas as linhas de crédito que foram anunciadas pelos governos estadual e federal, incluindo a da agência de fomento Desenvolve SP. Até agora, não recebi nada”, diz a chef Anouk Migotto, proprietária do restaurante Donna Pinha, em Santo Antônio do Pinhal (SP). “Desde o início do isolamento, dei férias para os funcionários e priorizei os pagamentos aos fornecedores. Eles dependem de mim e eu dependerei deles quando puder reabrir”, afirma. Segundo ela, ainda que as datas para o recolhimento de impostos tenham sido postergadas, as despesas com aluguel, água e luz continuam vencendo. “Preciso escolher que contas pagar, porque a minha prioridade agora é colocar comida dentro de casa”.

EXEMPLO DOS EUA Essa realidade não é exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, a National Restaurant Association encaminhou ao presidente Donald Trump e aos líderes do Congresso um documento em que reinvindica uma ajuda emergencial para manter viva uma cadeia que, segundo o órgão, “representa um dos principais pilares de cada comunidade”. A previsão da entidade é que vendas diminuam em US$ 225 bilhões nos próximos três meses nos EUA, o que provocaria a perda entre cinco e sete milhões de postos de trabalho. O documento propôs uma série de medidas para atenuar tal impacto, incluindo um fundo de recuperação do setor, bancado pelo Tesouro, de US$ 145 bilhões, além de outros US$ 100 bilhões na forma de seguros, e a criação de um programa de “Empréstimos Federais Iguais à Perda de Receitas”.

À ESPERA DA FREGUESIA: Na rede paulistana Varanda Grill, testes para detectar o novo coronavírus foram aplicados em 119 funcionários. “Confiamos que as medidas adotadas pelo governo e pela prefeitura terão o efeito de salvar vidas e recuperar a atividade econômica no curto prazo”, afirma o proprietário, Sylvio Lazzarini. (Crédito:Divulgação)

Segundo a proposta, o empréstimo receberia perdão desde que o empregador mantenha os seus trabalhadores na folha de pagamento sem reduzir salários. A carta serviu de modelo para algumas das demandas levadas pela ANR ao governo brasileiro. Para ajudar os restaurantes no curto prazo, a associação propôs que o governo libere recursos por meio das empresas de adquirência, como são chamadas as operadoras de maquininhas de pagamento de cartões de crédito e débito. Segundo o presidente da ANR, Cristiano Melles, a medida poderia irrigar o setor, permitindo um fôlego financeiro maior, até que a situação se normalize. “Essa atividade é uma das que mais insere pessoas de escolaridade média e jovens no mercado de trabalho. Os restaurantes têm bons programas de qualificação profissional. É importante manter essa função de formador de mão de obra”, afirma Melles. Outra demanda da ANR junto ao poder público é a uniformização do ICMS, que hoje varia de estado para estado, entre 2% e 6,5%. “Nossa proposta é um regime especial de 2% para todos. Isso aumentaria a arrecadação, protegeria as empresas e os empregos”. Segundo Melles, o impacto para os estados seria baixa, já que a contribuição do setor com o ICMS é pequena, comparativamente ao número de empregos que gera.

TAXAS DE ENTREGA Outro ponto que preocupa os donos de restaurante é a dependência das empresas que dominam o market place e as entregas. Enquanto no mundo todo cresce a pressão por taxas menores, de no máximo 15%, por aqui há quem cobre até 25%. Como o setor tem margens pequenas, esse adicional pode inviabilizar o negócio. O problema é que o mercado de entregas de refeições é quase monopolizado no Brasil, com um único operador respondendo por quase 90% dos serviços. “Nossa indústria vai mudar e esse canal será cada vez mais importante. É preciso que as regras favoreçam o setor. Queremos taxas de entrega mais justas”, diz Melles. “Estamos tentando desmistificar a ideia de que o delivery é a solução”. Em alguns casos, ele sequer é uma opção. “Estamos em uma cidade turística. Aqui ninguém pede comida. Todo nosso movimento depende de quem vem de fora”, afirma Anouk, do restaurante Donna Pinha.

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Sem delivery, ela criou uma forma de antecipar receitas futuras por meio da venda de vouchers. A ideia se baseou em uma experiência adotada por cervejarias. Para evitar a falência em massa de bares, marcas como Stella Artois, Heineken e Bohemia estimulam clientes a comprar tíquetes de consumo futuro com desconto de 50%. A diferença é coberta pelas cervejarias. “Aproveitamos essa iniciativa e lançamos um movimento de cunho social, em que 10% do valor pago pelo cliente é doado para 15 entidades assistenciais da região”, diz Anouk. O voucher solidário é válido para quatro cidades da Serra da Mantiqueira e poderá ser usado em 35 estabelecimentos, da data de reabertura até 31 de março de 2021.

O viés social também está presente em outra ação colaborativa que une os restaurantes paulistanos Le Tuscani e Café Journal e a importadora de vinhos Grand Cru. Juntos, criaram uma ação de financiamento coletivo beneficente com objetivos principais: gerar um mínimo de faturamento para conseguir manter a maior quantidade possível de funcionários em seus quadros de colaboradores e atender a necessidades básicas de pessoas em situação de rua, por meio da entrega de marmitas. O projeto de crowdfunding (financiamento coletivo) pretende fornecer 8 mil refeições à população mais afetada pela crise. “É uma ação temporária, não visa lucro e, sim, a manutenção de empregos, até que as casas voltem ao seu nível mínimo de operação com a reabertura do comércio”, diz Márcio de Paula, do Le Tuscani.

Ao custo de R$ 12,50, cada marmita traz uma refeição de 600 gramas com arroz, feijão, legumes e proteína animal. “Para evitar aglomerações, conforme recomendação da OMS, as entregas serão feitas em lotes, em pontos indicados pela Prefeitura e pelo Governo de São Paulo”, afirma Denios Rezende, do Café Journal. Ainda que os restaurantes não estejam conseguindo manter as receitas usuais de suas operações, muitos estão usando a criatividade para experimentar novas formas de atuação – algo que será vital para a sobrevivência dos negócios após a pandemia.