Para o executivo que conhece como poucos o setor automotivo no Brasil, o aquecimento das vendas não basta para recuperar o mercado — que só irá se normalizar depois de encerrado o atual conflito entre Rússia e Ucrânia.

O passado e o presente da indústria automotiva brasileira se misturam na trajetória de Cledorvino Belini. Ex-presidente da Fiat e da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), o paulistano segue como referência no meio, apesar de não mais viver intensamente o dia a dia das fábricas, como fez em grande parte de seus 73 anos. Essa aparente distância, no entanto, em nada o impede de analisar o momento conturbado do setor no mundo e no Brasil, onde a falta de peças tem obrigado as montadoras a interromper a produção, além de provocar queda nas vendas, intensificada pelo aumento do preço dos carros e, agora, pela alta dos juros, que impacta nos financiamentos. De janeiro a abril deste ano, fo­­ram vendidos 510.846 automóveis e co­­merciais leves no Brasil. Na comparação com o mesmo período de 20212, a queda foi de 22,8%. Enquanto as montadoras aguardam sinais de melhoras, Belini acredita que a normalidade do setor só será possível após o término do conflito entre Rússia e Ucrânia. E que novos investimentos dependerão dos resultados das urnas.

DINHEIRO – Qual sua avaliação do momento que indústria automotiva vive globalmente?
CLEDORVINO BELINI — É uma fase bastante complicada. O mundo está saindo da pandemia, mas essa guerra esdrúxula [na Ucrânia] cria uma incerteza muito grande nos mercados. Os preços dos combustíveis estão subindo de ma­­neira exorbitante, a inflação atinge não só o Brasil, mas outros países. Tudo isso dificulta os investimentos no setor e o consumo dos produtos.

Acredita que essa situação deverá se prolongar?
Rezo todos os dias para que a guerra termine, porque só haverá uma normalidade nos mercados depois que o conflito chegar ao fim.

Algumas montadoras no Brasil têm dado férias coletivas a seus colaboradores, por causa da falta de componentes nas linhas de produção. Isso preocupa?
O mundo ficou numa dependência muito grande de semicondutores de um lugar só [a Ásia] e hoje vive essa situação que levará um tempo para se normalizar. Difícil falar quanto tempo. Acho que a questão de suprimento será reestruturada no mundo.

Esse cenário deverá mudar conforme a eletrificação dos automóveis avance? Carros movidos a bateria empregam menos peças se comparados aos que usam motor a combustão…
Com certeza. Mas mudará sempre para melhor. Com processos mais modernos, processos não poluentes para produzir carros não poluentes e que, depois da vida útil, tenham reaproveitamento integral.

Diferentemente do mercado europeu, que estabelece prazos para o fim do uso do motor a combustão, a indústria no Brasil deverá demorar a adotar o veículo 100% elétrico?
O mercado nacional vai passar por uma longa fase do híbrido. Vai ser uma solução importante para o País antes de ser totalmente elétrico. Será o híbrido a álcool. O álcool fecha zero as emissões devido ao plantio, à fotossíntese e ao consumo. Não temos a pressa da Europa. Esse é o lado positivo. Os veículos [eletrificados] são muito caros. O Brasil terá tempo para prolongar o sistema de combustíveis atual e, simultaneamente, reduzir os custos do carro elétrico.

“O Brasil terá tempo para prolongar o sistema de combustíveis atual e, simultaneamente, reduzir os custos do carro elétrico” (Crédito:Istock)

Prorrogar a implantação de modelos totalmente elétricos é uma decisão acertada? Nossa indústria não ficará obsoleta?
É o caminho que o Brasil tem agora em termos de trecnologia e capacidade de produção. Existem tantas alternativas ainda em pesquisa, e o Brasil mostrou, há 40 anos, que era possível virar, fazer o carro álcool, fazer o flex. Ou seja, temos uma capacidade tecnológica muito boa para essa transformação na indústria automobilística.

Como o senhor enxerga a consolidação do setor em grupos com diversas marcas, caso da Stellantis (que reúne Fiat, Jeep, Citroën e Peugeot, entre outras), e da Aliança, com Renault, Nissan e Mitsubishi?
Há 30 anos já se falava nisso. É justamente a questão da escala. No automóvel hoje o grande investimento é no desenvolvimento das plataformas. E a tecnologia oferece sempre alternativas melhores. Para isso são necessárias plataformas que se adaptem. Projetar, por exemplo, uma plataforma para 1 milhão de carros é uma coisa. Projetar para 5 milhões, 10 milhões de carros, é outra. Há uma absorção nos custos bem menor. Ou seja, por veículo. A tendência é essa: ter carrocerias diferentes para cada brand, mas quando pegar todo o sistema da plataforma, o powertrain, a suspensão, a parte estrutural da carroceria, é tudo igual. Então, cria-se uma escala importante.

Qual a sua opinião sobre a liderança da Stellantis no mercado brasileiro?
É tão simples para a Stellantis manter esses 40% que tem do mercado. Basta investir em produtos. Não é portfólio. É qualidade, modernidade, plataformas. Porque é isso que o consumidor está procurando.

Qual comparação se pode fazer em relação ao perfil das montadoras de há 40, 50 anos, com as atuais? É fato que há menos funcionários (cerca de 105 mil no total), ao mesmo tempo em que aumentaram os processos de automação. Acredita que o número de colaboradores vai diminuir mais?
Não, isso depende do mercado. Diminuiu, mas chegamos a produzir quase 3 milhões de automóveis na época em que eu era presidente da Anfavea. Foi o recorde. Depende muito do mercado, da produção, das vendas e da exportação. O câmbio se mantendo competitivo para a exportação é uma grande oportunidade também que o País tem para fazer escala, para ser competitivo.

Falta maior apoio dos governos para desenvolver o setor?
Rodei o mundo e vi muitos países que oferecem incentivos. Não na produção. Na pesquisa e no desenvolvimento. O Brasil tem programas de incentivo à pesquisa, ao desenvolvimento, à inovação, mas acho acanhados. Isso, no Brasil, atrairia grandes investimentos de montadoras.

Como analisa o fim da produção de algumas companhias no País, como a Ford e a Mercedes, por exemplo? Em compensação, há outras empresas chegando, como a chinesa Great Wall Motors.
Em relação às marcas que saem e às que chegam é uma coisa normal no mundo inteiro. Depende da estratégia da companhia. Quanto aos chineses, sem dúvida estão colocando o pé firme no Brasil. Estão melhorando os seus produtos dia a dia. Acho que haverá a possibilidade de conquistarem uma boa fatia do mercado. Princi­palmente agora que ouço que pretendem desenvolver carros elétricos compactos low cost. Se conseguirem fazer isso, terão uma grande vantagem competitiva no País.

O senhor falou em recorde na produção na sua época como presidente da Anfavea. Há espaço para retomar esse crescimento ou com a nova cultura do jovem brasileiro, de não ter o carro como um sonho, isso é improvável?
A nova geração tem serviços mais eficientes, como o Uber. Então, realmente não se sente tão atraída por automóveis. Nós, mais velhos, viemos de gerações em que ter um carro era aspiracional. Quando tinha o primeiro já estava sonhando com o segundo. Ia evoluindo. Hoje eu vejo essa dificuldade.

Diante dessa situação, as montadoras adotaram alguns serviços para atrair os clientes, como o modelo por assinatura. O que prevê em relação ao tema?
Acho que o compartilhamento será a importante. Na verdade, acredito que haverá um mix de alternativas, com aluguel, carsharing. Aquela questão do passado, de você ter o automóvel, passar pretinho na roda, polir toda semana, é coisa do passado. Hoje, é mobilidade. E lá na frente a mobilidade pode ocorrer sem ter a propriedade.

“Os chineses estão colocando o pé firme no Brasil. Poderão conquistar uma boa fatia do mercado se conseguirem fazer carros elétricos low cost” (Crédito:Divulgação)

O aumento do preço dos carros é tendência?
Aconteceu um fenômeno. À medida que sumiram as matérias-primas, os preços cresceram. Assim como aumentou o custo do transporte por navio de contêineres. Houve uma recomposição dos preços dos veículos e, diante da oferta e da procura, subiram um pouco mais. Entendo que com essa gordura de preços que as montadoras recuperaram, quando houver muita oferta de carros, a margem poderá ser reduzida.

Mas os preços seguirão altos?
Não voltam mais ao que eram antes. Porque foram adicionados custos. O aço não vai diminuir [de preço]. Como eu disse, o que todo mundo vai poder fazer é reduzir margens. Mas ninguém quer. Principalmente agora, que voltamos a ter juros altos no Brasil. Todo o mercado tem que pagar esses juros.

Além de uma eventual redução dos juros, que outras medidas poderiam aquecer as vendas e a produção de carros no Brasil?
Acho que podem ocorrer estímulos pontuais para incremento de mercado. Apesar desses 35% que reduziram [no Imposto sobre Produtos Industrializados], se você somar PIS-Cofins, ICMS, ainda temos uma carga tributária absurda. Isso entra nos custos.

Quais as grandes vantagens e desvantagens de produzir no Brasil?
O Brasil tem uma proteção alta tributária que ao importar você leva desvantagem. Por isso que só os carros de alto nível são importados. No Brasil, uma das vantagens é possuir as matérias-primas necessárias. Tem o know-how estabelecido aqui desde os anos 1950, quando se desenvolveu a indústria automobilística. Há formação de engenheiros, de técnicos, em todas as especialidades. Tem capital fácil para fazer os investimentos. Você tem um conjunto. Falo pela minha carreira na Fiat, quando subimos do último lugar para o primeiro no mercado, aproveitando o cenário que se ofereceu na época. Investimos em produtos, em qualidade.

Independentemente de quem vier a ocupar a cadeira de presidente em 2023, de que forma a eleição pode afetar o setor automotivo?
É difícil fazer uma projeção. Acho que, primeiro, o próximo presidente eleito tem que se sentar, mostrar a que veio e dizer quais reformas pretende fazer. E aí, naturalmente, os investimentos da indústria também virão.