Sob a orientação do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o Ibama elaborou um contrato em regime de urgência para comprar, sem licitação, 20 mil litros de retardante de fogo para usar em áreas de queimadas no Mato Grosso com riscos de contaminação alertados pelo Ibama.

Esse produto químico, que é misturado à água e lançado por aviões sobre a vegetação, tem a propriedade de aumentar a capacidade de retenção do fogo. Os técnicos são taxativos ao recomendar “a suspensão do consumo de água, pesca, caça e consumo de frutas e vegetais na região exposta ao produto pelo prazo de 40 dias”.

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O Estadão apurou que o produto que Salles quer comprar, ao custo total de R$ 684 mil, será fornecido pela empresa Rio Sagrado Industrial Química. Essa é a mesma companhia que, nesta semana, fez uma “doação” de mil litros do retardante de fogo que Salles exibiu em sua visita a operações contra queimadas na Chapada dos Veadeiros, em Goiás.

Apesar de os grandes incêndios florestais estarem previstos pelos órgãos federais desde o início deste ano, com sucessivos alertas, Salles decidiu que, somente agora, próximo do fim da temporada de seca em boa parte do País, com níveis recordes de incêndios no Pantanal, é hora de comprar, a toque de caixa, um produto que não possui regulamentação de uso no Brasil e que requer uma série de cuidados com o meio ambiente e com a saúde das pessoas, por causa de seus riscos de contaminação.

A aquisição ocorreria nos próximos dias. A reportagem apurou que no último dia 11, em pleno domingo, a Procuradoria Federal Especializada do Ibama deu parecer favorável à compra em regime de urgência. No dia 8 de outubro, outro parecer, dessa vez da Diretora de Qualidade Ambiental do órgão, também deu sinal positivo.

No mesmo dia, a “aquisição emergencial de retardante de chamas para uso estratégico em combate a incêndios florestais” teve aval de analistas, mas com o alerta de que o produto previsto para auxiliar no combate do fogo inclui “prejuízos previstos à biodiversidade” já apontados no estudo técnico feito em 2018, quando o produto passou pelo crivo do Ibama. Esses impactos, porém, foram agora completamente ignorados pelo governo.

O Estadão teve acesso a toda documentação, incluindo a minuta de contrato que já foi elaborada para comprar o material. O documento traz a menção de compra da empresa Rio Sagrado Industrial Química, companhia que tem origem espanhola, mas que tem uma representação em Águas Claras, no entorno de Brasília (DF).

O contrato prevê a entrega de 20 mil litros do retardante de fogo no prazo máximo de 48 horas, para serem utilizados no Mato Grosso, ao preço de R$ 684 mil. A minuta estipula que dez mil litros devem ser entregues no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, no município de Chapada dos Guimarães (MT). Os outros dez mil devem ser enviados para a Estação Ecológica da Serra das Araras, em Cáceres, também no Mato Grosso. Ambos os órgãos são gerenciados pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).

A reportagem fez contato com a empresa Rio Sagrado, mas não conseguiu resposta até o fechamento deste texto.

A minuta do contrato de compra está nome do diretor de Planejamento, Administração e Logística do Ibama, Luís Calor Hiromi Nagao. O Ibama, o MMA e Ricardo Salles foram questionados desde a tarde desta segunda-feira, 12, sobre cada uma das informações publicadas nesta reportagem. Além dos dados mencionados, o Estadão perguntou porque, só agora, Salles resolve comprar, sem licitação, um produto de combate a incêndio, mesmo sabendo que se trata de uma situação prevista desde o início do ano. Não houve nenhuma resposta.

Riscos

Reportagem publicada nesta segunda-feira pelo Estadão revelou o conteúdo da nota técnica do Ibama que, em julho de 2018, analisou o produto que Salles quer comprar agora. Neste documento, os técnicos do Ibama analisaram o produto que foi lançado na região, ainda sem ter a devida regulação ambiental no Brasil.

O prazo de 40 dias sem o uso da água e da pesca é estipulado, de acordo com a nota, porque o produto Fire Limit FL-02, que foi lançado na floresta, demora pelo menos 28 dias para que cerca de 80% a 90% de seu material se degrade. Nesta semana, Salles foi alvo de críticas e protestos por moradores da região. O ministro postou imagens em suas redes sociais com o produto lançado na região e sobrevoou a Chapada, declarando neste domingo que o fogo tinha acabado na região.

O receio de contaminação pelo produto químico levou o órgão do próprio Ministério do Meio Ambiente a recomendar que todos os locais onde o retardante de chama fosse aplicado tivessem de ser georreferenciados, registrando a data da aplicação, quantidade de produto utilizada e tamanho da área aplicada, pelo prazo de seis meses, pelo menos, de forma a identificar algum dano ambiental decorrente da aplicação do retardante de chama. Além disso, recomendou que a aplicação desse produto fosse feita fora das Áreas de Preservação Permanente (APP), como margens de rios. A Chapada dos Veadeiros é uma região tomada por florestas protegidas, como o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, onde existe uma infinidade de áreas de preservação permanente.

Os técnicos afirmam que é preciso fazer análise química para investigar os teores do retardante na água, solo, sedimento, peixes e frutas, com coletas realizadas após 30 dias da aplicação do produto. A análise indica que são medidas básicas para adoção da alternativa, “considerando a inexistência de objeção legal que impeça a utilização do produto, recomendamos o uso restrito do retardante de chama à base de nitrogênio”.

Na nota técnica, o Ibama aponta que o tipo de produto utilizado não faz parte dos grupos de retardantes de maior preocupação ambiental e toxicológica, mas alerta que os reflexos dessa utilização ainda deveriam ser mais bem estudados, daí a necessidade de tantas precauções.

Sobre essas informações, especificamente, o MMA informou que, “na época, o Ibama estabeleceu recomendações gerais em um contexto onde não se havia definido que produto seria usado e nem em que locais com exatidão, considerando-se uma abordagem em abstrato”.

Recordes

Nos primeiros 11 dias de outubro, o número de focos de incêndio no Cerrado, onde se encontra a Chapada dos Veadeiros, já supera toda a queimada observada no bioma em outubro inteiro de 2019. Já foram registrados pelo Programa Queimadas, do Inpe, 9.884 focos entre o dia 1 e 11 deste mês, ante 8.356 focos observados nos 31 dias de outubro do ano passado. O bioma começa a engrossar a temporada de queimadas que assolam a Amazônia e o Pantanal.

Nesta terça-feira, 13, Salles tem audiência pública no Senado, para falar sobre as ações do governo para conter os incêndios no Pantanal, os piores do registro histórico. A audiência foi proposta pela Comissão Temporária Externa que analisa os incêndios no Pantanal e verifica se o governo federal tem realizado as ações adequadas para resolver os problemas.