Crise, pandemia, isolamento social, embates políticos, dificuldades econômicas. O ano de 2020 será lembrado pela maioria dos brasileiros como um dos anos mais difíceis dos últimos tempos. Para grande parte das companhias, também entrará para a história como o ano da Recuperação Judicial (RJ), mecanismo legal no qual empresários recorrem à Justiça para reestruturar suas dívidas e evitar a falência. Pelo atual ritmo de pedidos, com alta de 68,6% em maio na comparação com abril, de acordo com a Boa Vista, o Brasil deverá ter recorde de RJs. Segundo especialistas ouvidos pela DINHEIRO, o País pode ter, até o fim de dezembro, 10 mil companhias sob o guarda-chuva da lei de proteção antifalência. “O que antes era plano B ou C para as empresas virou plano A”, afirma Douglas Duek, CEO da consultoria Quist Investimentos, especializada em reestruturação e recuperação judicial de empresas. Segundo ele, são poucas as companhias que conseguem honrar seus compromissos diante de uma queda de 90% no faturamento. “Por isso, desde o começo de março, tivemos uma alta de 300% na procura por RJs, algo que nos leva a acreditar que o País terá de 8 mil a 10 mil pedidos até o final do ano”, analisa Duek.

Mesmo entre os mais otimistas, a previsão não é boa. A consultoria Pantalica estima em pelo menos 3 mil as companhias que deverão pedir RJ, diante de um cenário de queda de 6% prevista para o PIB neste ano. O número é quase 70% superior ao recorde de 1,8 mil empresas que solicitaram proteção contra credores na Justiça, na recessão de 2016, até então a maior da história. No ano passado, foram 1,5 mil RJs, metade do que apontam as melhores previsões para 2020. Até empresas que já tinham entrado em RJ sofreram um segundo baque com a pandemia. É o caso da Oi, que pediu, na terça-feira (16), o aditamento ao seu plano de RJ, aprovado em 2017.

NOVO PRAZO Já em processo de RJ, a OI pediu à Justiça um aditamento ao seu plano de recuperação. (Crédito:Arquivo/IstoÉ Dinheiro)

Sócio da Pantalica, Salvatore Milanese diz que uma empresa de médio porte no Brasil tem caixa para 60 dias de operação, período que já se esgotou desde o início da pandemia. Além disso, muitas companhias já estavam endividadas ou descapitalizadas antes mesmo da chegada do coronavírus, depois de anos consecutivos de pálido crescimento econômico — entre 2000 e 2019, o PIB do Brasil avançou a uma média de pífios 2,2% ao ano. Flávio Calife, economista-chefe da Boa Vista, avalia que a situação é ainda pior para determinados segmentos. “O setor de serviços já vinha com mais dificuldade de recuperação, mesmo antes da pandemia”, diz. Para ele, os resultados de maio sinalizam apenas uma parte do que poderá vir pela frente.

O maior desafio para as empresas é encontrar uma saída. Pesquisa encomendada pela Quist mostra que a ajuda emergencial anunciada pelo governo federal não está chegando na ponta. O levantamento, que ouviu 100 companhias com faturamento entre R$ 30 milhões e R$ 300 milhões, revela que 78% das consultadas não tiveram acesso a nenhum tipo de crédito. Entre as que estão nesse grupo, 17,5% declararam que a ajuda esbarrou na falta de informações nos bancos. “Vivemos um mini-pós-guerra, num cenário em que bancos têm medo de emprestar e as companhias estão sem alternativas para seguir sobrevivendo”, diz Duek, da Quist. Para ele, a solução seria buscar outras vias de crédito e até mesmo montar um “hospital de campanha” para empresas, com agentes para mediar o acesso ao crédito. “Ou o governo e o BNDES agem agora, ou será tarde demais”.

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“Desde o começo de março, tivemos uma alta de 300% na procura por Recuperações Judiciais, o que nos leva a crer que podemos chegar a 10 mil este ano” Douglas Duek, CEO da Quist Investimentos.

AMBIENTE FAVORÁVEL Apesar das dificuldades, o ambiente está favorável às companhias que pleiteiam RJ. Em março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação 63, que orienta juízes a adotar medidas para mitigar o impacto da Covid-19 nas empresas em RJ. Segundo a recomendação, os magistrados devem dar prioridade à análise de pedidos de levantamento de valores em favor dos credores ou de empresas recuperandas. A medida também autoriza a revisão dos planos de recuperação, quando comprovada a dificuldade da empresa em cumprir o que foi acordado na RJ, em função da pandemia. Além disso, o Projeto de Lei (PL) 1.397/2020 suspende automaticamente as execuções judiciais de empresas em crise. É uma tentativa de evitar que os tribunais entrem em colapso. Aprovado na Câmara, o PL está em análise no Senado. Sócio do escritório Veirano, especializado no tema, o advogado Paulo Campana é otimista: “Não há dúvidas de que o Judiciário está muito mais simpático aos pedidos de RJ.”