Foi assim. A China informou há tempos que lançaria de seu Centro Espacial em Jiuquan a nave tripulada Shenzhou-14, impulsionada pelo foguete Long March-2F, no domingo (5) às 10h44. Exatamente às 10h44 do domingo o lançamento foi executado. Com três tripulantes a bordo, os taikonautas – como os chineses chamam seus astronautas – Chen Dong (43 anos), Cai Xuzhe (46) e Liu Yang (43), a segunda mulher do país a realizar um voo desse tipo. A missão deve durar seis meses e visa finalizar a Estação Espacial Tiangong até dezembro. Será um marco do programa espacial da nação asiática, estabelecido há 30 anos, e o início da habitação permanente chinesa no espaço.

O lançamento foi transmitido ao vivo pela tv. O projeto espacial do país é orgulho nacional e coloca Pequim na vanguarda dessa corrida. É aí que o projeto chinês ganha destaque e relevância – mais do que anda se noticiando na mídia ocidental, cujos grandes veículos praticamente têm se limitado a apenas registrar o evento. A liderança espacial é a verdadeira grande fronteira. De onde sairão respostas que passam por soluções para o fornecimento de energia, o futuro da alimentação do planeta e a preponderância militar. Além dessa corrida tecnológica de ponta, Tiangong representa ainda uma jogada geopolítica que posiciona a China à frente de qualquer outro país.

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Isso porque o congresso americano proibiu parcerias entre a China e projetos espaciais que envolvam os Estados Unidos. As justificativas eram as de sempre: “segurança nacional”. Com isso, Pequim nunca conseguiu frequentar a Estação Espacial Internacional (ISS), um consórcio de 15 países (EUA, Rússia, Canadá, Japão e 11 europeus) comandado por Washington-Moscou. A ISS já recebeu 258 visitantes de 20 países, incluindo um brasileiro. Nenhum chinês. Barrada na festa, Pequim decidiu construir seu próprio salão de baile. Não à toa Tiangong significa Palácio Celestial. Tudo bem que, ao ser concluída, ela mais se parecerá com um apartamento de três pequenos dormitórios, sala e cozinha, com capacidade para três pessoas – ou seis quando houver troca de tripulação.

E ficando pronto até dezembro vai colocar Washington num nó político. A ISS está em operação desde 1998 e estava prevista funcionar até 2024. Tiangong tem previsão de durar pelo menos até 2032, podendo ter sua vida estendida por mais cinco anos. Ou seja. Num período de oito anos a partir de 2024 apenas os chineses teriam um lar espacial. Renovar a vida útil da ISS tornou-se crítico para os americanos. Por isso o governo Joe Biden prometeu em dezembro passado esticar a duração da ISS até 2030. Para isso, além de aportes bilionários há uma encrenca bem mundana a ser resolvida: os ataques (incluindo embargos, sanções e fornecimento de armas a Kiev) promovidos por americanos contra Moscou desde a invasão da Ucrânia.

Dmitry Rogozin, o cara de 1m90 que desde 2018 manda na Roscosmos, a agência espacial russa, foi ao Twitter ameaçar romper a cooperação que existe com os EUA no espaço caso as sanções pela invasão da Ucrânia não cessem. A despeito de transformar a ameaça em fato, ele coloca pressão onde sabe que os Estados Unidos não têm como agir isoladamente. Isso já havia ocorrido em 2014, quando os russos tomaram a Crimeia da Ucrânia e Washington costurou suas primeiras sanções. À época, Rogozin era o ministro para Defesa e Indústria Espacial e os EUA estavam sem veículos espaciais. Utilizavam caronas nas espaçonaves Soyuz para chegar à ISS e voltar de lá. Rogozin afirmou que “depois de analisar as sanções sugiro aos EUA que levem seus astronautas para a ISS usando trampolins”.

Desta vez, à frente da Roscosmos, suas ameaças foram mais específicas. “Acredito que a restauração das relações normais entre parceiros da ISS só será possível com o levantamento completo e incondicional de sanções ilegais.” E usando redes sociais disse que “o setor russo é quem garante que a órbita da estação seja corrigida… inclusive para evitar detritos espaciais”, escreveu no Telegram, com a imagem de um mapa mostrando que a ISS passa apenas por uma pequena porção da Rússia, mas sobrevoa regularmente grandes áreas sobre os EUA e a Europa. Tradução: pode cair um pedaço de estação espacial em suas cabeças se ‘a gente não fizer a nossa parte’.

Esse é o nó espacial atual dos americanos. E por isso a China faz não apenas um golaço tecnológico, mas especialmente diplomático. A Missão Permanente da China na ONU assinou com o escritório para assuntos espaciais da organização internacional (a Unoosa) um memorando para que qualquer país membro da ONU realizasse pesquisas na estação espacial chinesa. Dois anos depois houve uma convocação de projetos e nove deles (vindos de 23 instituições de 17 países) foram aceitos. Nenhum brasileiro. Essa posição chinesa foi um marco diplomático e no xadrez geopolítico. Conforme escreveu a analista independente e especialista em assuntos de defesa Namrata Goswani para o think tank The Diplomat, abrir as portas a pesquisas de qualquer país do mundo foi “um gesto de alto nível que dá ao país influência e poder”. É mais que tecnologia. É a luta para ser o número 1 global.