No meu artigo de outubro, recorri a Shakespeare (“O Rei Lear”) para falar sobre a importância da sucessão e a urgência de adquirir sabedoria antes de envelhecer. Na reflexão deste mês, gostaria de abordar outro aspecto sobre o tema da maturidade, relacionado com o saber viver e a felicidade. Desta vez, vou recorrer a uma obra ainda mais antiga – na verdade, a uma das mais antigas da história ocidental –, mas não por isso menos atual: a “Odisseia”, de Homero. Escrita por volta do século 8 a.C., a “Odisseia”, juntamente com a “Ilíada”, é, em paralelo com a “Bíblia”, a narrativa fundadora não só da literatura, mas de toda a cultura no Ocidente. Consciente ou inconscientemente, tudo o que se criou em termos literários e artísticos – incluindo aqui o cinema – nestes 2.800 anos deriva, em certa medida, destas obras. Nelas, podemos encontrar lições preciosas e essenciais sobre o que somos e como podemos ser melhores, mais saudáveis e felizes.

A “Odisseia” conta a história do retorno de Ulisses (Odisseu, em grego), rei de Ítaca, para sua casa, depois de uma ausência de 20 anos: dez deles lutando contra os troianos e outros dez enfrentando mil e uma aventuras num caminho de volta extremamente tumultuado, como costuma acontecer muitas vezes com qualquer um de nós.

Neste momento, estou terminando de escrever um livro sobre as lições que a “Odisseia”, em diálogo com outros grandes clássicos da literatura universal, pode nos oferecer a respeito do que é próprio do humano – num mundo marcado pela desumanização e pela mecanização do humano –, assim que muito falaremos aqui sobre essa história e seu grande herói, Ulisses. Mas para nossa reflexão neste espaço, gostaria de evocar uma figura secundária, porém muito inspiradora: Laertes, pai de Ulisses.

Quando Ulisses é convocado para se juntar aos outros reis gregos para lutar contra os troianos, a fim de resgatar Helena – esposa de Menelau, rei de Esparta, raptada por Páris, príncipe de Troia –, o filho de Laertes tinha recém-assumido o comando de seu reino. Casado havia pouco mais de um ano com Penélope, com quem tinha tido um filho, Telémaco, Ulisses já se encontrava pronto para assumir o comando não só da família, mas de todo o reino. Assim, mostrando uma sabedoria que faltou ao rei Lear, Laertes, que efetivamente soube preparar seu sucessor, depois de passar as rédeas do governo para seu filho, retira-se para uma bucólica propriedade rural no interior da ilha de Ítaca, longe o suficiente para estar devidamente afastado e perto o suficiente para ser rapidamente acessado em caso de necessidade e conselho. Ali, acompanhado apenas de sua esposa e de um velho criado, Laertes passou a se dedicar ao cultivo de seu jardim e das suas boas e fiéis amizades. E mesmo diante do longo afastamento do filho, tumultuado pelo estado de vacância que gera uma complicada afluência de pretendentes à mão da suposta viúva, Laertes pouco ou nada interfere, mostrando seu incrível desprendimento em relação ao poder. Ainda que num primeiro momento a atitude do ex-rei possa até parecer temerária e omissa, o desenrolar da história nos mostra o quanto ela se apresenta sábia e acertada. Laertes é o exemplo eloquente e virtuoso daquele que soube “largar o osso”. Ou seja, tendo exercido o poder, de forma justa e honesta, soube preparar seu sucessor e, confiando plenamente na sua obra, no momento oportuno sai de cena, consciente de que o exercício do poder e do comando é algo com tempo de validade determinado. Além disso, Laertes ensina como ser alguém é muito mais do que ter um cargo, e que a autorrealização humana vai muito além da realização na carreira. Em tempos de hipervalorização do poder, com seus cargos e status, o exemplo de Laertes não deixa de ser um interessante convite à reflexão.