Existem duas maneiras de se tornar uma companhia grande e duradoura. Ser dono de uma marca relevante é a primeira. Construir uma marca relevante é a segunda. Punto e basta, diriam os italianos. No Botafogo, uma grife que já foi gloriosa no segmento do futebol, a imagem derreteu. A boa notícia é que a reconstrução está em marcha. Num mundo de comoditização acelerada de produtos e serviços, as corporações de sucesso buscam no branding o diferencial competitivo. “As empresas devem produzir principalmente marcas, e não produtos”, afirmou em seu livro decisivo (No Logo) a canadense Naomi Klein, uma das maiores especialistas no assunto. [Para ser sincero, ela é bem antiglobalização, crítica feroz do consumismo desenfreado e talvez fique bastante deslocada em páginas de economia. Mas gente inteligente arruma espaço e sempre será referência.] Klein é referência. Trata de forma crítica algo que tem tudo a ver neste momento com o clube carioca nascido no fim do século 19: seu rebranding.

A tarefa é ingrata e está a cargo de Jorge Braga, CEO desde março. Economista com passagens por cargos executivos de Citi, Claro, Embratel, Net, Oi e Xerox, entre outras empresas, ele foi contratado não por ser um personagem do mundo do futebol. O oposto. Indicado ao clube por headhunters, junto de outros quatro nomes, foi o escolhido por saber atuar em empresas complexas. Os primeiros passos seguiram o manual de toda companhia em crise financeira – exceto clubes de futebol no Brasil. Cortar despesas, reavaliar cada contrato, rediscutir dívidas. “A gente foi literalmente linha a linha. Em cima de todas elas”, afirmou Braga à DINHEIRO. “Somente entre contratos de grande porte renegociamos 100.” Ele sabe que não existe rebranding sem boas práticas de governança. E sanear as finanças é o step crucial para os próximos passos: fazer do Botafogo o primeiro grande clube, com títulos nacionais de primeira linha, uma empresa.

MUNDO CORPORATIVO Há dois anos, internamente o Botafogo mudou seu estatuto para se adequar à possibilidade de virar empresa. O que se tornou bem mais próximo com a Lei sancionada em agosto que permite a transformação de clubes em Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), algo mais próximo de obrigações e regras de qualquer SA. Associações de futebol no Brasil costumam ser quase invariavelmente aberrações sem controle financeiro, apesar de movimentar a paixão (e o dinheiro) de pelo menos três a cada quatro brasileiros – os que se declaram torcedores de alguma equipe. Entidades sem fins lucrativos, relutam em se transformar em empresas. Basicamente, trata-se de um mundo em que a gestão quase sempre se divide entre má-fé ou incompetência. É desse buraco que o time carioca quer escapar.

EXPERIÊNCIA DE MERCADO Jorge Braga, CEO do Botafogo desde março, foi contratado por sua vivência executiva em grandes empresas. (Crédito: Vítor Silva)

Até porque ou é isso ou a decadência definitiva. Aqui não há terceira via. Em 2020, ano em que esteve na principal divisão do futebol nacional (a Série A), os números foram R$ 166 milhões (receitas), menos R$ 295 milhões (despesas), igual a um resultado negativo de R$ 129 milhões. Em campo, foi rebaixado. Neste ano, por disputar a Série B, as receitas de transmissão e patrocínio caíram por existir menor exposição da marca em horários nobres.

O resultado previsto para 2021 (até julho realizado e setembro-dezembro projetado) aponta R$ 117 milhões (receitas), menos R$ 177 milhões (despesas), com resultado negativo de R$ 60 milhões. Entre 2020 e 2021 haverá queda nas receitas (-29%), mas compensada pela forte redução nas despesas (-40%). Com isso, o resultado negativo vai encolher 53%. Em termos de caixa, a redução do rombo é de quase R$ 70 milhões em 12 meses. Poderia ser excelente notícia caso o Botafogo não estivesse entre os cinco maiores devedores do futebol brasileiro. Ranking da consultoria SportsValue tem Atlético-MG na ponta (dívida de R$ 1,2 bilhão), seguido por Corinthians-SP (R$ 962 milhões), Cruzeiro-MG (R$ 949 milhões), Botafogo (R$ 946 milhões) e Internacional-RS (R$ 883 milhões). Dever quase R$ 1 bilhão e fazer uma margem negativa de R$ 60 milhões é de tirar o sono. “A relação dívida/receita é esmagadora, de quase oito vezes”, afirmou Braga. “Numa empresa tradicional, qualquer coisa acima de duas vezes já seria sinônimo de insolvência.”

Por saber o tamanho da encrenca ele atacou o problema na fonte. As duas maiores despesas do clube são salários (em especial dos atletas profissionais) e despesas com a dívida. No Botafogo, a folha dos jogadores já foi reduzida em 25%. “Neste ano, o nosso grande desafio é a sobrevivência”, afirmou, sendo direto como exige a situação. Quando chegou, em março, Braga disse que o clube tinha caixa para mais algumas semanas. “As empresas quebram não por falta de patrimônio, mas por resultado de caixa.” Diariamente ele se reúne com um Comitê de Caixa. Além disso, foi traçado um plano de metas com quase 70 objetivos. Inclui de redução de gastos, canais de atração de receitas (como o projeto de museu) e teto salarial de atletas. Parte já foi realizada, parte deve ser concluída até dezembro. Entre as poucas não realizações, duas estão dentro de campo: chegar à final do campeonato estadual encerrado no primeiro semestre e chegar às oitavas de final da Copa do Brasil. Mas a mais importante nesse quesito, voltar à Série A nacional em 2022, está bastante encaminhada – a seis jogos do fim, o clube está na segunda posição e quatro times sobem.

O CAMINHO DAS VITÓRIAS Saneamento financeiro é a base para bons resultados em campo, o mais importante para o torcedor convencional. (Crédito: Fernando Salles)

FRAGILIDADE O torcedor raiz pode até não gostar de olhar para finanças. Deposita todas as suas aspirações a resultados em campo, e o último título nacional na principal divisão já tem 26 anos. O Botafogo, no entanto, só retomará sua força se sanar sua fragilidade financeira. Com a SAF, há uma espécie de divisão em dois dos clubes que aderirem: a parte associativa fica de um lado e o futebol, com seus ativos, de outro — o que inclui a possibilidade de atrair investidores. Até porque a SAF submete os clubes que aderirem à regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). “É como se agora fosse uma startup do futebol”, disse o CEO.

Ele afirma que investidores e fundos de investimentos só aparecem depois de fazer três perguntas: 1) Quem é o grupo de profissionais à frente do projeto? 2) O trabalho de casa (governança) está sendo feito? 3) Quais os ativos e a segurança jurídica? O novo Botafogo responde as três. Na sexta-feira (29), o clube oficializou a contratação da XP para atrair esses investidores. Pedro Mesquita, responsável pelo banco de investimentos da financeira, aposta nessas novas frentes. “Reforça o DNA da XP na abertura de novos mercados”, disse. Para o Botafogo, mais um largo passo para o rebranding. Seu torcedor pode ainda não saber, mas é caso de festejar como título de Libertadores.