Alguns números do mercado de investimentos saltaram aos olhos nos últimos meses. Em abril, o Tesouro registrou recorde de emissão líquida, de R$ 1,57 bilhão, com 360.114 operações. Os títulos do Tesouro Direto são conhecidos como porta de entrada para o mundo dos investimentos. Além disso, a B3 anunciou, na quarta-feira (10), que havia superado o número de 2,5 milhões de investidores ativos, crescimento de 123,8% em 12 meses. Apenas em março deste ano, no auge da crise de mercados causada pela chegada da pandemia do novo coronavírus, 200 mil pessoas compraram ações pela primeira vez, rejuvenescendo o mercado de capitais brasileiro e trazendo aportes menores. Em épocas anteriores, momentos de volatilidade espantavam investidores iniciantes. Agora, parece que estão mais tranquilos, sabendo que precisam comprar na baixa, resistir às instabilidades e vender na alta.

Alguns fatores podem ajudar a explicar a súbita maturidade do investidor brasileiro. Mas talvez nenhum demonstre uma correlação tão direta com esse fenômeno quanto a evolução da figura do agente autônomo. Escritórios com esses profissionais se espalharam pelo Brasil, assumindo gradativamente o papel de aconselhador de investimentos que era reservado ao gerente de banco. Estima-se que já existem mais de 8 mil agentes autônomos no País. A história da evolução desse mercado se confunde com a história da hoje gigante XP, que nasceu em 2002 como um escritório de agente autônomo em Porto Alegre, fundado pelo carioca Guilherme Benchimol.

Fernanda Alves “com as pessoas mais inseguras quanto ao mercado, ficou mais claro o valor de se assessorar com quem tem experiência” Sócia da Praisce Capital e agente autônoma em Curitiba. (Crédito:Divulgação)

Em 2010, ao conhecer o modelo criado por Charles Schwab nos Estados Unidos, a empresa iniciou a mudança definitiva que a tornou uma rede de agente autônomos aconselhando os clientes a investir numa plataforma que é um verdadeiro shopping center virtual de produtos financeiros dos mais diversos perfis e de diversas instituições. Agora, cerca de 85% dos agentes autônomos do Brasil estão ligados à XP. “Diferentemente de outras empresas que se relacionam com escritórios de agentes, eu e o Guilherme já sentamos na outra cadeira”, diz Rogério Carvalho, sócio responsável pela rede de assessores da XP Investimentos. “Estamos construindo esse canal há 20 anos, na base de erros e acertos.”

O modelo parece estar tão provado que há relatos de conversas para criar estruturas de agentes em todos os grandes bancos. Até o tradicional Safra, conhecido por atender um perfil de cliente de alto poder aquisitivo, anunciou recentemente a entrada nesse segmento. Ou seja, a competição promete ser maior e não se restringir a corretoras e empresas voltadas para a bolsa. O número de assessores ligados à XP cresceu 72,5% em dois anos, de 4 mil para 6,9 mil pessoas. “Por mês, entram 200 assessores. A maioria vinda de bancos”, diz Carvalho.

ADAPTAÇÃO À primeira vista, a pandemia do coronavírus poderia ser um empecilho para os planos de expansão. Afinal, muito da relação de confiança estabelecida entre agentes e seus clientes se dá em visitas pessoais e conversas olho no olho. Os integrantes do mercado, porém, têm percebido que o modelo está se fortalecendo e com pandemia etapas de evolução acabaram sendo aceleradas. “Em cinco dias, já estávamos adaptados às condições de isolamento”, afirma o executivo da XP.

Segundo Fernanda Alves, sócia da Praisce Capital e agente autônoma em Curitiba desde 2008, num primeiro momento parecia que o desafio seria muito grande, mas acabou se provando mais fácil do que imaginava. “A permanência em casa tornou as pessoas mais disponíveis. Não perdemos mais tempo com deslocamentos, podemos conversar com mais clientes por dia e as reuniões ficaram mais focadas e objetivas”, diz Fernanda. “Com as pessoas mais inseguras quanto ao mercado, ficou mais claro o valor de se assessorar com quem tem experiência.” A Praisce possui clientes com uma carteira somada de R$ 3 bilhões, atendida por 40 assessores. “Costumo dizer que informação no mercado financeiro é igual a tomar banho: o de ontem não serve para hoje”, afirma. “Por isso, é importante estar sempre acompanhando os movimentos do mercado.”

Essa adaptação rápida à quarentena se provou muito mais difícil para os rivais tradicionais: os gerentes de bancos, uma vez que muitas agências ficaram fechadas por semanas e sem fluxo de clientes. “A primeira coisa que o agente faz, quando conhece um cliente, é passar o celular”, diz Marcos Corazza, sócio e chefe de relacionamento com empresas da XP Investimentos. Segundo ele, ferramentas tecnológicas oferecidas pela companhia aos escritórios também ajudaram na migração para um mundo pós-pandemia. Isso inclui cursos, relatórios, informações sobre consolidação de carteiras e estrutura de análise econômica e política. Uma qualificação incessante.

Wagner Vieira a BlueTrade, o escritório que fundou no interior de São Paulo, é um dos cinco maiores ligados à XP e vai abrir este ano escritório no Rio de Janeiro. (Crédito:Divulgação)

Para isso, as exigências de suporte também crescem. Um grande projeto tecnológico entrou em operação este ano, que se provou no timing certo: a instalação de um software de relacionamento com clientes (CRM, na sigla em inglês) da fabricante americana Salesforce. Ele permite automatizar processos de atendimento e informações sobre quem tem investimentos com a empresa. A XP paga pelas licenças de uso para todos os agentes individuais, num custo mensal de US$ 350 mil. O investimento é alto, ainda mais quando considera também os custos no projeto de implementação do software – não revelados pela empresa.

Wagner Vieira, sócio-fundador da BlueTrade, escritório sediado em Ribeirão Preto (SP) e um dos cinco maiores da rede de 600 da XP, diz, no entanto, que esse tipo de ferramenta faz a diferença para aprimorar a qualidade de serviços. “Antigamente, eu colocava tudo sobre o cliente no papel. Hoje não temos nem gaveta no escritório, para ninguém anotar nada mesmo”, afirma. “É melhor que tudo seja atualizado no sistema. O software ajuda: avisa quando vence alguma aplicação de cada cliente, acompanha o saldo deles e informa sobre o surgimento de um produto novo.”

MERCADO POTENCIAL Apesar de particularmente bem sucedida, a trajetória de Vieira e da BlueTrade é bastante típica da evolução do mercado. A empresa surgiu em Franca, cidade do interior de São Paulo, próxima do Triângulo Mineiro, quando ele e o sócio decidiram deixar o banco em que trabalhavam. “Eu era conhecido como Wagner do Santander. Não sou de família conhecida na cidade, mas de origem humilde”, diz. “Pegamos a carteira de clientes que tínhamos no banco e fomos empreender.” Em pouco tempo, a cidade (de 342 mil habitantes) ficou pequena para os negócios e a sede foi mudada para Ribeirão Preto (683 mil habitantes), que fica a 100km.

Eduardo Akira “O investidor está percebendo as suas aplicações minguando, com a baixa da Selic. Agora, precisa tomar mais riscos e sofisticar os seus portfólios”, Sócio da Vero, especializada em clientes de alta renda. (Crédito:Divulgação)

Hoje, são seis escritórios, 7,5 mil clientes e R$ 4,2 bilhões sob assessoria. Agora, a BlueTrade está abrindo uma operação no Rio de Janeiro. “Não saímos atrás dessa expansão. Fomos procurados por pessoas de lá e de São Paulo, por termos ficados conhecidos na rede”, diz. Com o novo escritório, a meta de fechar o ano assessorando R$ 6 bilhões em recursos pode ser ampliada para R$ 7 bilhões. Os autônomos recebem cerca de 1% do volume investido.

O espaço para crescimento parece dado para todo o mercado. No Brasil, ainda 90% dos clientes de investimentos possuem produtos de grandes bancos, proporção inversa à dos países mais desenvolvidos. A tendência, no entanto, é de mudança rápida, diz Caio Peres, sócio e chefe de expansão de escritórios autônomos da XP Investimentos. “Em algumas cidades já existem mais assessores do que gerentes de alta renda de bancos”, diz. “O desafio agora é que eles precisarão evoluir tecnicamente.” Por muito tempo, a competição foi por quem tinha mais produtos para oferecer, agora é pela qualidade de serviço. “A internet está trazendo mais conhecimentos para o investidor e eles querem aprofundar as dúvidas”, afirma.

PORTFÓLIO SOFISTICADO A crise atual só vai acelerar tudo isso, acredita também Eduardo Akira, sócio do escritório Vero Investimentos, especializado em clientes com mais de R$ 1 milhão aplicados. Os efeitos econômicos do isolamento social aceleraram um processo de baixa de taxas de juros, afetando investimentos de renda fixa. “O investidor está percebendo as suas aplicações minguando”, diz. “Agora, precisa tomar mais riscos e sofisticar os seus portfólios.” É exatamente o trabalho que os agentes autônomos são remunerados para fazer. Até a crise tem ajudado esse mercado a evoluir. E, com ele, pode aumentar também ainda mais a maturidade do investidor brasileiro.

XP assume a Fliper

Depois de um ano de negociações, a XP anunciou, na segunda-feira (8), a compra do controle da Fliper, uma startup dona de aplicativo que centraliza informações financeiras do usuário. O valor da transação não foi revelado. Fundada em 2017, a jovem empresa tem 65 mil usuários, que possuem carteira de R$ 7 bilhões.

A fintech está atrelada ao conceito de open banking, que permite o compartilhamento de dados do mesmo cliente armazenados em diferentes instituições financeiras. “A Fliper surgiu quando os três sócios discutimos qual era o grande problema do mercado financeiro brasileiro que ainda não tinha sido resolvido por inovação”, disse Renan Georges, cofundador da fintech, em anúncio do negócio pela internet.

Foi Walter Poladian, que trabalhava no mercado financeiro, quem sugeriu que as pessoas não conseguiam ter em mãos as suas informações consolidadas de quanto dinheiro possuíam em cada banco, e quais eram as taxas de retorno dos seus investimentos. “Essa falta de transparência era um problema para as pessoas terem melhores resultados”, diz Poladian, também sócio da empresa.

A fintech não deve ser integrada à operação da XP. Os fundadores da Fliper continuarão administrando a evolução da empresa de forma independente. O aplicativo continuará sendo de uso gratuito. Se não deve ser uma fonte de novas receitas, ele deve, no entanto, servir como forma de a XP conhecer melhor os usuários de seus serviços, para que possa oferecer investimentos mais de acordo com as características deles. “É muito difícil para qualquer pessoas saber explicar exatamente o que quer, mas é mais difícil ainda não revelar quem é por meio de seus hábitos”, afirma Karel Luketic, responsável pela área de conteúdo digital da XP.