Falar com uma amiga grávida no Facebook ou buscar dados sobre o ciclo menstrual online poderiam se tornar atividades de risco nos Estados Unidos, depois que a Suprema Corte decidiu revogar o direito federal ao aborto na última sexta-feira (24). Devido ao medo de que essas pegadas digitais sejam usadas contra as mulheres que abortam e seus potenciais “cúmplices”, representantes democratas e organizações em defesa dos direitos humanos pedem às plataformas tecnológicas que garantam a defesa dos dados pessoais.

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“A diferença entre ontem e a última vez que o aborto era ilegal nos Estados Unidos é que vivemos em uma era de vigilância online sem precedentes”, escreveu no Twitter Eva Galperin, diretora de cibersegurança da ONG Electronic Frontier Foundation (FFF).

“Se as empresas de tecnologia não querem que os dados se tornem armadilhas (…), devem parar de coletar esses dados agora. Não devem vendê-los ou tê-los quando chegarem os pedidos judiciais”, acrescentou.

Google e Meta (Facebook, Instagram, Messenger) rastreiam usuários para vender espaço publicitário ultrapersonalizado para anunciantes. Embora essa informação seja “anônima”, ainda é acessível às autoridades com uma ordem judicial.

A decisão da Suprema Corte deixa os 50 estados da União livres para proibir o aborto e pelo menos oito já o fizeram.

– Silêncio –

Algumas leis adotadas inclusive antes da decisão da Suprema Corte, como a do Texas em setembro, incentivavam os cidadãos a denunciar as mulheres suspeitas de terem abortado ou as pessoas que as ajudaram, até mesmo o motorista de aplicativo que tenha levado-as até a clínica, por exemplo.

Deste modo, o Google poderia se tornar uma “ferramenta para extremistas de direita que queiram reprimir as pessoas que buscam atendimento médico reprodutivo”, informaram 42 representantes democratas em uma carta aberta dirigida ao chefe do Google, Sundar Pichai, no final de maio.

Porque “o Google coleta e conserva extensos registros de dados de localização de centenas de milhões de celulares”, acrescentaram.  Google, Meta e Apple não responderam às perguntas da AFP sobre o caso.

“Eles se mantêm discretos” até agora, afirma Corynne McSherry, diretora jurídica da ONG EFF.

“Podem e devem fazer muito mais para proteger a confidencialidade de dados de todos os usuários”, ressaltou. “Se isso afeta seu modelo econômico, é hora de trocar de modelo”.

A associação publicou uma lista de recomendações para as plataformas, que inclui uma coleta menor de dados, criptografá-los, não compartilhá-los com atores duvidosos e não obrigar os usuários a se identificarem, entre outras coisas.

Também pede que não cedam a eventuais exigências judiciais que peçam informações sobre todos os smartphones próximos a um estabelecimento de planejamento familiar.

– Todos espiões –

Mesmo que as empresas se esforcem, isso não isentaria as próprias pessoas afetadas de tomar medidas, reconhece a ONG.

A organização aconselha usar mecanismos de busca menos exigentes em dados como DuckDuckGo, aplicativos de mensagens criptografadas como Signal ou ProtonMail, e até mesmo redes privadas virtuais (VPNs) usadas por ativistas e jornalistas em países autoritários.

No caso do TikTok e Instagram, também pedem que apaguem os aplicativos móveis para a fertilidade e a contracepção.

“Natural Cycles (NC) decidiu criar uma experiência completamente anônima”, declarou na sexta-feira no Twitter Elina Berglund Scherwitzl, co-fundadora deste aplicativo. “A meta é conseguir fazer com que ninguém – nem mesmo a Natural Cycles – possa identificar a usuária”, insistiu.

Além das empresas e dos cidadãos, a responsabilidade de proteger os dados pessoais corresponde às autoridades, lembram os políticos.

“Não corresponde aos indivíduos saber como suprimir seus rastros e quais aplicativos são seguros ou não. Cabe a nós, ao governo, fazer o nosso trabalho”, estimou na sexta-feira Sara Jacobs, representante democrata entrevistada pela AFP, que no início de junho apresentou um projeto de lei (“My Body My Data Act”) para obrigar as empresas a coletar somente as informações de saúde necessárias para exercer sua atividade.

Califórnia e outros estados americanos adotaram nos últimos anos leis para regular melhor a confidencialidade das informações pessoais online, mas o Congresso não consegue chegar a um acordo para uma lei federal.