?Eu estava bêbado.? Boris Nikolayevich Yeltsin admitiu o que todos viram naquela tarde de 1994, uma das mais vexatórias de sua vida. Presidente da potente Rússia, ele estava em Berlim, na Alemanha, em visita oficial. Uma orquestra militar o saudava, de acordo com o protocolo devido aos chefes de Estado. Subitamente, o líder soviético surpreende a platéia ? e o mundo, que assistiria mais tarde as imagens gravadas pela TV. Trôpego, movimenta-se em direção aos músicos e, num gesto inusitado, toma a batuta e assume o posto do maestro. Desconcertadas, as autoridades aplaudem. Estarrecidas, perguntam-se: como um alcoólatra poderia estar à frente de uma nação como a Rússia e, principalmente, ter ao alcance de seus dedos um arsenal nuclear capaz de devastar o planeta? A resposta, o próprio Yeltsin se encarrega de dar, mais de seis anos depois, com uma franqueza peculiar. ?O álcool era, para mim, o meio mais rápido para atenuar o stress. Todo o peso do poder era aliviado depois de alguns goles. E, com aquela sensação de leveza, eu realmente sentia como se pudesse conduzir uma orquestra.?

 

Não é algo fácil de se admitir. Ainda mais para alguém que, durante anos, foi o dono do poder no Kremlin. Ele deixou definitivamente o antigo palácio dos czares poucas horas antes da celebração do réveillon do ano 2000. A história ainda irá julgá-lo. Enquanto isso, o próprio Yeltsin se encarrega de oferecer subsídios para esse julgamento. A relação com a bebida ? que todos conheciam mas que nunca antes havia sido tratada às claras ? é um deles e assim como vários outros está em Midnight Diaries (Diários da Meia-Noite), livro de memórias recentemente lançado pelo ex-presidente. Em suas noites de insônia e caminhadas pelos escuros e solitários corredores do Kremlin, produziu um extenso ? e às vezes dramático ? relato da solidão do poder.

Minado pelas pressões e pelo álcool, Yeltsin cambaleou muitas outras vezes. Nunca, entretanto, havia sido tão abalado quanto na tarde de 26 de junho de 1996. Faltavam dois dias para as eleições presidenciais e ele concorria à reeleição. A vitória parecia garantida, mas o clima de insatisfação percorria a imensidão do país. Yeltsin se recolhera cedo. Por volta das 17 horas, chegara em casa após um dia estressante. Depois de descer alguns degraus, instala-se na poltrona da sala de estar em busca de uns instantes de repouso. ?De repente, uma sensação muito estranha tomou conta de mim?, relata. ?Era como se alguém, muito grande e forte, me segurasse entre seus braços e me carregasse.? O velho urso ? que, montado em um tanque, encerrou a era Mikhail Gorbatchov ? fraqueja. Era um ataque do coração.?No início não senti dor, apenas um medo aterrador. Então a dor me atravessou, uma enorme, dilacerante dor.(…) A única coisa que eu dizia era: ?Por que agora???

Yeltsin sobreviveu ao infarto e às eleições, que venceu sem dificuldade. O fardo do cargo, porém, continuou a lhe exigir um esforço além de suas possibilidades. Enfraquecido politica e fisicamente, passou períodos em camas de hospital. Diante de um iminente colapso econômico, Yeltsin preferiu conferir alguma nobreza ao seu fracasso. Era 14 de dezembro de 1999 e, em seu gabinete, ele tomou a mais solitária das decisões: resolveu entregar o poder.

Durante duas semanas, Yeltsin carregou a renúncia em absoluto sigilo, só rompido no dia 28. Repentinamente, como é de seu estilo, interrompeu as gravações de sua mensagem de ano novo para a TV russa e transferiu-as para três dias depois. O presidente seguiu para casa e, na mesma sala onde seu coração falhara anos antes, reuniu-se com dois de seus assessores mais próximos e determinou que preparassem as formalidades da transferência de poder. Em seguida, chamou a filha Tanya, que nos derradeiros anos no Kremlin tinha se revelado uma astuta raposa. Em lágrimas, ela apoiou o gesto do pai. À mulher, Naina ? a quem sempre fez questão de manter afastada da política ? Yeltsin só revelaria o segredo, por insistência de Tanya, minutos antes de sair de casa, no dia 31 de dezembro, para o derradeiro discurso.

?Naina, tomei uma decisão?, disse. ?Estou me aposentando. Meu discurso de despedida será esta tarde. Não deixe de assistir à TV?. A reação da mulher o tomou de surpresa. Primeiro, ela ficou estática. Em seguida, encheu-o de beijos e abraços. ?Que maravilha. Finalmente!? Naquele momento, relata Yeltsin, ele percebeu a transformação que viveria a partir de então. ?Estava crescendo sentimentalmente, passando de político a um ser humano normal. Graças aos céus.?