Desde o início da pandemia da Covid-19 muito se fala em “guerra contra o vírus”. A alusão à maior batalha da saúde pública em 100 anos é óbvia: inimigo letal, o coronavírus já provou mais de 60 mil mortes no Brasil em menos de quatro meses. Além de tirar vidas, ele tem destruído a economia. Na última semana, o número de brasileiros sem ocupação (87,7 milhões) superou pela primeira vez o dos que têm emprego (85,9 milhões). Cinco séculos antes de Cristo, o general e fiósofo chinês Suz Tzu já alertava que “sem estratégia, as chances de vencer uma guerra são ínfimas”. Por isso um plano de ataque é imperativo para minimizar as perdas provocadas até agora e permitir que o custo desse combate não penalize ainda mais os brasileiros. Essa é a ideia do Programa de Retomada Consciente elaborado pela RC Consultores, do economista Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do BNDES. Dividida em pontos estratégicos e com um cronograma bem delimitado, o plano pretende atacar não apenas os efeitos da pandemia. Sua intenção é eliminar problemas estruturais da economia brasileira que o País consiga crescer de forma sustentável. Ele prevê dar suporte financeiro emergencial aos vulneráveis economicamente, rever a estrutura fiscal pensando no longo prazo e acelerar investimentos em empregos.

Todas essas medidas se apoiam em um tópico central: é preciso deixar de lado a ideia de que o governo não tem capacidade de investimento. Segundo Paulo Rabello de Castro, é possível que os governos federal, estadual e municipal elevem a proporção de investimento em relação ao PIB, que há anos está estagnada em 15,8%. Para isso é preciso criar o que ele chama de “poupanças forçadas”, redirecionando os impostos para investimentos públicos, em vez de usar a receita apenas para cobrir despesas correntes. “Se o governo brasileiro fizesse como na China, onde os impostos financiam a construção de pontes, hospitais e escolas, ele estaria fazendo poupança forçada”, afirma. Para o economista, o Brasil faz o contrário: usa nossa poupança para pagar suas contas. “Esse é o fulcro de toda a estagnação desde os anos 1980, quando chegou ao fim o ciclo de poupança forçada pelo governo para induzir desenvolvimento.”

Patricia Stavis

“Nosso programa mobiliza valor próximo a R$ 1,4 trilhão, o dobro do anunciado pelo governo federal” Paulo Rabello De Castro, Economista, Ex-presidente do BNDES e autor do programa de retomada consciente.

A primeira medida para inverter essa lógica, segundo o economista, é criar um limitador emergencial de 10% sobre todas as despesas correntes do governo, de forma linear. “Esse corte, de R$ 760 bilhões, seria suficiente para cobrir o custo da pandemia, incluindo a extensão do auxílio emergencial de R$ 600.” Segundo ele, essa cartilha já foi seguida por Angela Merkel na Alemana e Barack Obama nos Estados Unidos para equilibrar o orçamento. “Nosso programa mobiliza valor próximo a R$ 1,4 trilhão, o dobro do anunciado pelo governo federal.” Com isso seria possível concretizar as outras medidas do plano da RC Consultores. É o caso da ajuda às pessoas físicas e jurídicas, aos estados e municípios. Para que esse esforço se sustente, viriam ajustes fiscais e, por fim, projetos de longo prazo nas áreas de infraestrutura e educação para o trabalho (confira os detalhes do plano no quadro à página 20).

Na avaliação do professor de macroeconomia da Fipecafi, Silvio Paixão, a forma como as políticas de estímulo econômico têm sido conduzidas terão pouco efeito sobre a retomada. Ele prevê que o crescimento do PIB em 2021 ficará entre 1% e 2%. “Hoje, o que se pode prever é que a recuperação econômica, quando começar, será gradual e contínua, mas muito lenta”, afirma. Nas contas de Rabello de Castro, caso as medidas do seu Programa de Retomada Consciente sejam adotadas, o PIB este ano recuará 2,3%, para crescer 4,3% em 2021.

Nelson Almeida

“Sabemos do momento difícil da economia e da saúde, mas nunca deixamos de lado nosso olhar sobre o endividamento” João Doria, governador de São Paulo.

ESTADOS E MUNICÍPIOS Na guerra contra o coronvírus, os estados e municípios combatem no front, tanto para evitar baixas quanto para contabilizá-las. O problema é que eles já entraram no campo de batalha sem munição: muitos já estavam debilitados, com dívidas astronômicas. As despesas com folha de pagamento cresceram em ritmo superior ao PIB e se tornaram impraticáveis. Para se ter uma ideia, em abril de 2020 a dívida consolidada dos 26 estados (sem contar o Distrito Federal) somou R$ 975 bilhões, com tendência de elevação brusca em função da pandemia. Apesar do número alarmante, apenas Rio de Janeiro (R$ 294 bilhões), Rio Grande do Sul (R$ 183 bilhões), Minas Gerais (R$ 170 bilhões) e São Paulo (R$ 149 bilhões) somam 81% desse rombo. Segundo Rabello, o primeiro passo seria um deságio de 30% nessas dívidas. “Com os juros baixos e aval secundário do governo federal, vai formar fila para comprar essas dívidas, no Brasil e no exterior. Isso acaba com o ‘pires na mão’ dos governadores e instala uma nova mentalidade. A dívida dos estados já está no Tesouro, só que hoje o governo tem papel sujo na mão.”

O endividamento do estado São Paulo está em 149% das receitas correntes e já há perigo de comprometimento da liquidez em um cenário em que as receitas estão e continuarão impactadas pela Covid-19. Segundo o governador João Doria (PSDB), a questão do endividamento e as alternativas para que não haja um descontrole são debatidas constantemente com a equipe econômica. “Sabemos do momento difícil da economia e da saúde, mas nunca deixamos de lado nosso olhar sobre o endividamento público”, disse Doria à DINHEIRO. Para ele, a capacidade de recuperação de São Paulo é fantástica, e a proximidade do chamado “platô do contágio” – quando o número de infectados atinge um ponto alto, segue horizontal por um período e depois começa a cair – fará com que o estado possa ter uma retomada mais forte.

“PRECISAMOS PRESERVAR OS NEGÓCIOS” Por trás do planejamento estadual está Henrique Meirelles. À reportagem, o secretário da Fazenda do estado afirmou que a balança entre aumentar o endividamento sem perder o controle faz parte do jogo. “O que é melhor? deixar o endividamento subir ou deixar o estado e a economia entrarem em colapso?”, questiona. Para o ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, o importante mesmo é evitar a depressão econômica, impedindo que as empresas quebrem. “Precisamos preservar os negócios e o parque produtivo. E depois efetuar a retomada”, afirma. Governador do estado mais industrializado do País e com uma população que supera 45 milhões de pessoas, Doria acredita ser necessário que o governo estadual dê impulsos para que a engrenagem econômica pegue no tranco. Para isso, ele cita a importância do capital estrangeiro. “Ele será fundamental nessa retomada”, disse. E parece ser isso que o governador tem buscado. Segundo a agenda pública de Doria, há planos de viagens aos Emirados Árabes e à Alemanha no início de 2021, dando continuidade à rota de eventos internacionais em que o governador participou desde o início do mandato e que resultaram na atração de investimentos bilionários ao estado.

Se o aforismo de Sun Tzu está correto e as chances de vencer uma guerra sem estratégia são ínfimas, o Brasil está condenado à derrota. O que se vê é um pelotão despreparado com um líder que nem sequer reconhece o poder de destruição do inimigo. E, em vez de buscar as alianças que permitam o bom combate, queima cartuchos no alvo errado. Maior prova disso foi o anúncio feito pelo governo federal na semana passada, de reajustar em até 73% a bonificação dos militares. A despesa extra, em cinco anos, chegará a R$ 26,5 bilhões. “E o governo é incapaz de conceder R$ 5 bilhões para socorrer as micro, pequenas e médias empresas”, diz Paulo Rabello de Castro. Como já se disse, o Brasil trava hoje duas guerras: uma é a dos brasileiros contra a Covid-19; a outra, do governo contra o próprio País.