Com apenas 7% de sua população vacinada contra a Covid-19, de acordo com o Our World in Data, a Rússia perdeu no dia 11 de abril um pedaço de 120 anos de sua história gastronômica com o fechamento do empório Eliseevsky, em Moscou. Mas o inimigo não foi só a pandemia. Foi também um elefantídeo bastante conhecido: a burocracia, na forma de privatizações, digamos, fantasmas – litígios imobiliários jogam propriedades num limbo jurídico e inviabilizam negociações, essenciais num momento de pandemia. A combinação dos dois fatores causou a morte dessa casa centenária.

Com ornamentos da mais fina art nouveau russa nas paredes e gôndolas de metal, guichês e geladeiras em madeira nobre, o Eliseevsky ocupava a esquina de paredes em rosa claro de um palácio imperial transformado em museu – foi a antiga mansão da princesa Zinaida Volkonskaya, que fazia reuniões culturais com músicos, escritores e poetas como Alexander Pushkin. Em suas últimas semanas de atividade, o empório viu prateleiras esvaziarem e os clientes frequentes se perguntarem o que estava acontecendo, pegando alguns itens para levar de recordação, já imaginando o pior. O caviar, uma iguaria que no período soviético só era encontrada lá, sumiu.

O fechamento de endereços como o Eliseevsky evidencia um drama do chamado comerciante local. As grandes cadeias de supermercados, sem problemas de propriedade, viram suas vendas e ações crescerem. Redes como a Magnit e Pyaterochka & Perekrestok rapidamente aumentaram a entrega de produtos ditos “socialmente essenciais” na pandemia. Até câmeras foram colocadas direcionadas para prateleiras para apontar em tempo real como estavam os estoques – algo que o Eliseevsky nem de longe pensou em fazer, claro. E os russos não estão dormindo com um copo de vodca na mão: startups tecnológicas de delivery fazem em 15 minutos entregas de produtos com scooters couriers, como a Lavka.

Analistas citam o modelo do Eliseevsky como impeditivo em um momento em que realmente as pessoas, sem saírem muito de casa, adotaram novos hábitos, como comprar mais on-line. E negociações para baixar o aluguel realmente cravaram o último prego no marco gastronômico. Dependentes do aspecto social e de nicho, como o Eliseevsky, restaurantes também foram afetados pelo vazio do movimento presencial. Alguns, pelo formato não-delivery friendly, fecharam e entregaram as chaves ao proprietário, como foi o caso do sofisticado Vogue Café, com seu chef russo Pavel Anatolyevich e cozinha europeia com toques locais, ou do cult pub com cara underground Kamchatka, que no verão tinha sua porta cheia e jovens ao sol segurando canecas da cerveja local. É um novo mundo duro para os mais intimistas e personalizados negócios de mercadorias e alimentos. Até na Rússia.

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Gleb Prostakov — porta-voz do empório Eliseevsky

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O que o Eliseevsky representava para a cidade?
Ele estava no mesmo endereço desde o primeiro ano do século 20. Era a loja mais famosa na parte histórica de Moscou, com uma belíssima arquitetura. A uma caminhada do Kremlin. E nessa parte da cidade não existem grandes cadeias de supermercado por causa do preço alto dos imóveis. Então, o Eliseevsky não era só focado nos turistas, servia aos residentes e trabalhadores. A loja em São Petersburgo continua funcionando, apesar da pandemia. Então a Covid-19 é só parte do problema.

O que, além da pandemia, levou ao encerramento das atividades?
Essencialmente foi um problema de privatização nos moldes russos. O empório ocupava uma área que estava sob controle de uma companhia por 18 anos. Pagávamos aluguel para ela. Por lei, ela teria a preferência na compra da propriedade. Mas entre 2015 e 2017 houve brigas judiciais sobre a validade desses contratos e preços. O proprietário ganhou em todas as instâncias, mas o órgão do governo simplesmente se recusou a cumprir essas decisões. O imóvel, em tese, pertence à cidade. Mas sem um registro oficial. Você negocia com quem? É um limbo judicial.

Existem muitos empórios na mesma situação em Moscou?
Em relação a um empório, é caso único. Mas questões de privatizações como essa existem.

Como a pandemia afetou pequenos mercados e até restaurantes na Rússia?
No final de 2020, 40% dos restaurantes na Rússia mudaram de dono. Alguns locais cults, como o Vogue Café, fecharam para sempre. O número de litígios entre donos de propriedades e donos de restaurantes com relação a aluguéis aumentou consideravelmente. Só daí já dá para ter uma ideia do quadro.

Qual o futuro para esse tipo de empório e outros negócios de menor porte?
Essas lojas têm dois tipos de consumidores: os turistas e os locais. A indústria do turismo está em declínio – existem restrições para entrar no país. Localmente, depende do número de residências ao redor, pois trabalhadores de escritório não costumam comprar toda a gama de produtos de uma loja dessas. E muitos estão em trabalho remoto.

O governo ajudou esses comerciantes durante a pandemia?
Sim, desde pequenos empréstimos com obrigação de manterem empregos, contratos de locação mais suaves, adiamento e até cancelamento de cobrança de impostos. Hoje Moscou e outras grandes cidades não estão em quarentena, mas os hábitos de consumo mudaram durante a pandemia. As pessoas começaram a economizar e o tíquete médio de compras presenciais diminuiu.