As batalhas envolvendo o governo e o Congresso em torno de reformas de grande impacto não irão se resumir à proposta de imposto simplificado. Uma grande disputa se intensifica em relação à reforma administrativa. A data para início das discussões mais acaloradas já estava marcada. Na segunda-feira 17, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a proposta de reforma estava “madura” e quase pronta para chegar ao Parlamento. Nos dias seguintes, ele leu o texto preparado pela equipe econômica e a expectativa era de que ela fosse encaminhada ao Congresso na quinta-feira 20. “A reforma administrativa chega esta semana”, afirmou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em evento em São Paulo na terça-feira. Ele também antecipou, na oportunidade, que a proposta discutida só valeria para futuros servidores e previa um novo sistema de remuneração, não mais com promoções por tempo de serviço, mas motivadas por mérito.

Em pouco tempo, no entanto, todas essas previsões ruíram ao peso das dificuldades que podem tornar essa a mais complicada das grandes reformas defendidas pelo governo. Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, foi captado em transmissão do canal oficial da Presidência criticando o Legislativo e acusando os congressistas de “chantagear” o governo. Com isso, a reforma voltou para a gaveta. Agora, ficou sem data de sair dela. De qualquer forma, a sua tramitação já não seria fácil em condições normais de temperatura e pressão. Dentre as maiores reformas, talvez seja ela a de maior consenso entre os economistas, uma vez que pode ajudar a conter o aumento do déficit público, evitar que o teto de gastos seja rompido e, ainda, flexibilizar pagamentos aos servidores em períodos de crise econômica. Mas, por outro lado, também promete ser a com menos apoio por parte do Congresso. Diferentemente da reforma tributária, em que o Congresso lutou para assumir o protagonismo, Maia exigiu que o texto da administrativa viesse do Executivo. Talvez temendo o desgaste junto a suas bases eleitorais.

Não ajuda nada na situação o fato de ela ser levantada num ano de eleições municipais. Ao tocar na remuneração de funcionários públicos, afeta um dos grupos de maior capacidade de pressão junto a prefeitos que buscam a reeleição ou a deputados que buscarão cargos de prefeito. Ou seja, congressistas ou partidos que votarem a favor da reforma correm o risco de ser confrontados em relação a isso durante suas campanhas. “O timing é o primeiro semestre”, afirma Marco Antônio Teixeira, coordenador do curso de administração pública da escola de negócios da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-Eaesp). “Se ela não avançar no primeiro semestre, esquece.”

Para apaziguar os ânimos, o governo informou que os assessores parlamentares, assim como os militares, seriam poupados. Mas pode não ser o bastante. Estima-se que em torno de 60% dos congressistas guardam relação com corporações de funcionários públicos. Muitos deles, inclusive, vieram do funcionalismo, e tendem a defender interesses corporativistas.

Como se toda a dificuldade natural dessa reforma não fosse o bastante não só Heleno parece empenhado dentro do alto escalão do governo em complicar ainda mais o cenário. Uma semana antes, o ministro da economia, Paulo Guedes, cometeu a infeliz comparação de funcionários públicos com parasitas, acirrando ainda mais os ânimos. Na terça-feira à tarde, o presidente Jair Bolsonaro cancelou encontro com empresários e marcou uma reunião de última hora com Guedes. O mercado entendeu que o superministro corria riscos de cair, o que derrubou a bolsa de valores, ou que pelo menos receberia um “pito” pelas declarações polêmicas recentes. “O Executivo é campeão em criar conflitos de dentro para fora”, diz Teixeira. “A reforma envolve interesses antagônicos e nem o próprio governo consegue se pacificar em torno dela. A crise com Guedes mostra isso.” A reforma, que, se não for aprovada, pode prejudicar o respeito ao teto de gastos já em 2021, parece ser vista como de mais importância pela equipe econômica do que pelo presidente, que fez quase toda a sua carreira pública no Congresso.

Fogo amigo ao comparar funcionários a parasitas, Guedes minou as chances de a reforma avançar. (Crédito:FramePhoto)

PONTOS PRINCIPAIS A proposta promete ser ampla. Novas regras podem destravar os concursos públicos, que, segundo Bolsonaro, ficarão restritos apenas aos “essenciais” enquanto a reforma não passar. Ela pode ajudar a equiparar as condições salariais dos servidores públicos aos funcionários da iniciativa privada. Também deve extinguir algumas profissões, ainda que sejam mantidas as carreiras tradicionais, que passariam a ter avaliação de desempenho e capacitação. Outro ponto seria flexibilizar a estabilidade da carreira, limitando o benefício a alguns cargos e a ser efetivo apenas depois de um certo tempo de trabalho. A equipe que formula a proposta estudou criar uma PEC contando apenas os seus pontos principais. Mais para frente seriam tratadas questões como a diminuição de números de planos de carreira e a criação de um formato de contratação de servidores temporários. “A equipe do Ministério da Economia parece ver a reforma apenas pela lógica orçamentária”, diz Fernando Coelho, professor do curso de gestão de políticas públicas da Escola de Artes Ciências e Humanidades, da Universidade de São Paulo. “A questão de custos é importante, mas uma reforma administrativa deveria considerar formas de aprimorar a qualidade do serviço público.”