O cenário é simples: o presidente Jair Bolsonaro tem contra ele o peso de um relatório da CPI da Covid que o indicia a nove crimes. Uma popularidade derretida pelos diversos erros na condução política, econômica e social do Brasil durante a pandemia e o desembarque de parte do mercado e dos empresários. Todos esses pesares que se acumulam nas costas do presidente da República não surgiram de uma hora para outra. Então parece lógico que a solução também não possa se dar a toque de caixa. Mas a lógica não é a premissa de Bolsonaro. Com um programa social feito às pressas (que repete os erros do Auxílio Emergencial, não tem fonte definida de recursos e não mapeou o público-alvo) o governo coloca em prática um plano que muito se assemelha à condução na pandemia. Em vez de desenvolver vacinas, prefere uma solução não comprovada, como a cloroquina.

Os problemas do novo Renda Brasil, que foi confirmado na tarde de quarta-feira (20) pelo ministro da Cidadania, João Zema, já nasce capenga e fadado à revisão. Não há sinalização de onde virão os recursos que custearão um programa de transferência de renda que passará dos atuais R$ 192 para R$ 400 nem como serão inseridas mais 2,2 milhões de famílias no programa. Com essas duas modificações, o impacto médio anual seria de R$ 85 bilhões.

Mas, ainda que essa dúvida seja sanada, o problema é maior. Quando o governo inicia um programa desses ele precisa se apoiar em números. O mais importante é um cálculo com três variáveis: o número de beneficiários, o valor do benefício e o dinamismo da economia. Com essas três linhas é possível avaliar qual corda pode ser esticada. Aumentar o número de beneficiários dá mais dinamismo à economia, mas só se a retomada estiver em curso. Elevar o valor do benefício é mais proveitoso em economias que já estão dinâmicas. “Puxar as duas cordas de uma vez em uma economia fragilizada não é apenas um erro político. É uma aberração econômica”, disse Carlos Eduardo Massi, um dos economistas que desenharam o Fome Zero no começo dos anos 2000 e, mais posteriormente, criaram o Bolsa Família.

E ainda que a literatura econômica tenha espaço para discussões mais profundas sobre como transferir renda (vale lembrar do vencedor do Nobel de Economia deste ano, David Card, que provou que aumentar salários não representa menos emprego) certamente não foi por uma inspiração de Arquimedes que Guedes, deitado em sua banheira em Brasília, gritou “Eureka!” e descobriu que solução viria de um programa caro e sem lastro. O problema é mais embaixo e pouco tem relação com melhoria do bem-estar social ou da economia.

QUEM AVISA… Antes da metade do ano, aliados do presidente que circulavam pelo Congresso Nacional já sinalizam para Bolsonaro que sua popularidade derretia, enquanto a do ex-presidente Lula crescia. Era evidente que o Bolsonaro precisaria agir. Quando a CPI da Covid culminou em uma enxurrada de acusações não havia mais tempo.Parlamentares governistas exigiram uma ação. E ela seria o Auxílio Brasil.

Tudo organizado com o ministro da Cidadania, João Romã, o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (que sempre transitaram bem no Parlamento). Faltava apenas um aval. O do ministro da Economia, Paulo Guedes. E não podemos dizer que ele não lutou contra. Guedes é o último dos cavaleiros a tentar manter a imagem de controle dos gastos públicos, mas com a pressão de Bolsonaro que minguava nas pesquisas de popularidade, pouco ele podia fazer. O centrão já havia pedido a cabeça de Guedes.

85 bilhões de reais ao ano é o valor previsto para cumprir o novo renda brasil, com benefício de R$ 400, como anunciado

Como última carta na manga, Guedes condicionou o auxílio à aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para tratar dos precatórios, dívidas judiciais que a União tem obrigação de cumprir. O objetivo era postergar parte dessas obrigações para que houvesse mais espaço no Orçamento de 2022 (ano eleitoral). Para o economista Ricardo Hamoud, professor de macroeconomia do Ibmec, a PEC em questão é um calote. “O governo sinaliza que gasta mais do que arrecada, não consegue fazer as reformas necessárias e adia o caos para os próximos governos”, disse.

O problema é que dar calote não significa sumir com a dívida. Se a PEC for aprovada nos termos que agora estão em pauta, haveria o pagamento de R$ 37,8 bilhões em precatórios dos R$ 89,5 bilhões previstos para 2022. Isso empurraria os valores em uma grande cascata que, com a estimativa de novas obrigações judiciais ano a ano. Faria a União chegar a estrondosos R$ 346,7 bilhões em 2030. Um presente-bomba para os próximos governos. Ricardo Godoy, sócio-diretor da Precavida, empresa especializada na negociação de direitos creditórios, disse que a medida pode ser ainda pior. “O novo texto propõe que seja destinado menos de 50% do valor necessário para quitação dos precatórios referentes a 2022, e não traz solução para o montante total da dívida. O que deixa boa parte dos credores sem perspectiva real de recebimento”, disse.

MERCADO EM TRANSE E se entre o Executivo e o Legislativo tudo parecia combinado, seja com a PEC, seja com o furo do teto, quando o governo avisou que anunciaria o novo programa e não explicou como iria bancar, o resultado foi catártico. Na terça-feira (19) o Ibovespa, principal indicador da B3, reucou 3,28% e encerrou o pregão em 110.672 pontos. O dólar foi a R$ 5,59, (+1,35%). No meio desse engasgo do mercado, o governo cancelou o anúncio e deixou todos no escuro. Na quarta-feira (20) o presidente Bolsonaro garantiu os R$ 400 do benefício com responsabilidade fiscal, o que, de certa forma, acalmou o mercado, mas não por muito tempo.

Na noite de quarta-feira, em evento na Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) Guedes disse que pediria “licença para gastar” com o programa fora do teto. Um gasto de R$ 30 bilhões até o fim de 2022. A fala foi o estopim para outra reação do mercado. Na quinta-feira (21) o dólar chegou a bater R$ 5,6315, em uma alta de 1,32%. O Ibovespa estava, ao meio dia, em 108.995pontos, uma baixa de 1,62% e aprofundando o engasgo do começo da semana. Para Bruno Teixeira, advogado tributarista do TozziniFreire Advogados, a forma como o governo conduz o assunto é equivocada. “O discurso é fácil, mas a solução é errada. O que o governo precisa fazer para impulsionar os projetos não é mudar a regra do jogo, mas reduzir gastos e fazer escolhas melhores.”

30 bilhões de reais é a cifra que Paulo Guedes quer gastar fora do teto para bancar o programa Auxílio Brasil em 2022

Mas escolhas melhores não é o forte do governo. O Auxílio Brasil não mostra o número de famílias em extrema pobreza, onde elas estão ou como chegar até elas. Não diminui fraudes, aliás, as agrava, já que condiciona o recebimento a um aplicativo similar ao auxílio emergencial, que apresentou grandes problemas. Mas nada disso é relevante. A construção de narrativa é um dos poucos pontos eficientes de Bolsonaro. Quando se fala em furar o teto de gastos para pagar emenda política, por exemplo, a opinião pública rechaça. Mas dizer que o furo virá para ajudar o mais pobre é uma narrativa convincente. Dizer que reduziu gastos é diferente de dizer que empurrou uma dívida. E dizer que Bolsonaro pensa nos mais pobres é diferente de dizer que o objetivo do jogo é se reeleger.