A quarta-feira (17) será lembrada como o dia em que o Banco Central (BC) teve de se curvar à realidade. Depois de seis anos baixando a taxa de juros referencial Selic para tentar aquecer a economia – e, nos últimos tempos, para contrabalançar o impacto da pandemia –, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou os juros mais do que o esperado. Os economistas previam uma alta de 0,50 ponto porcentual na Selic. Porém, o aumento foi de 0,75 ponto porcentual, acima do previsto. E não foi a única surpresa. No Comunicado divulgado logo após a reunião, o Copom abandonou sua tradição de tratar dos juros com uma linguagem sutil e frequentemente cifrada. Contrariando sua cautela habitual, o Comitê foi claro em informar que está contratado um novo aumento da Selic, também de 0,75 ponto percentual, na reunião marcada para os dias 4 e 5 de maio.

A quarta-feira também foi dia de reunião do equivalente americano ao Copom, o Federal Open Market Committee (Fomc). Lá, os prognósticos são bem mais positivos. A economia americana está caminhando para o seu crescimento mais forte em quase 40 anos, disse o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) Jerome Powell na quarta-feira, mesmo dia da reunião do Copom. Apesar disso, o Fed manterá as políticas de expansão monetária e juros baixos, ignorando os riscos de um aumento da inflação. Segundo Powell, os próximos indicadores deverão ser positivos e um crescimento de 6,5% na economia americana neste ano já pode ser esperado. Além dos estímulos, a queda nos casos da Covid-19 devido ao aumento da vacinação também auxilia o desempenho. Por aqui, porém, o Comunicado do Copom foi claro ao informar que há vários riscos no horizonte. No cenário externo, além da alta das commodities, o crescimento dos países desenvolvidos representa um risco para as economias emergentes.

Rápido no gatilho: Roberto Campos Neto, presidente do BC, é incisivo para conter a inflação (Crédito:REUTERS/Adriano Machado/File)

A conjuntura brasileira também não é favorável. Há riscos de alta de inflação, em especial dos combustíveis. No Comunicado, o BC indicou que essa pressão coloca em risco o cumprimento da meta de inflação prevista para 2021. Os índices mostram isso. No dia 11 de março, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um IPCA de 0,86% referente a fevereiro. A inflação acumulada no ano é de 1,1%, e a taxa em 12 meses chegou a 5,20%. Esse resultado está perigosamente perto do teto da meta, que é de 5,25% (3,75% mais 1,5 ponto porcentual).

Não é um número isolado. Na terça-feira (16), a Fundação Getulio Vargas (FGV) divulgou o IGP-10 referente a março. A inflação em 12 meses está em assustadores 31,1%. Apesar de descartarem o repasse desse porcentual aos contratos, os economistas advertem quanto ao impacto do número nas expectativas do mercado. Com tudo isso, não restou alternativa ao BC a não ser interromper uma sequência ininterrupta de corte da Selic que se iniciou em junho de 2015 e passar a elevar as taxas, movimento que não deve parar tão cedo. Na edição mais recente do Relatório Focus, que concentra os prognósticos para a inflação, a economia e os juros dos profissionais do mercado financeiro, a Selic prevista para o fim de 2024 é de 6% ao ano. “Mas todo mundo está refazendo as contas depois do Comunicado, e o porcentual da próxima edição do Focus deve ser maior”, disse o economista da CM Capital, Alexandre Almeida.

ANCORANDO EXPECTATIVAS Na avaliação de João Beck, economista do escritório de investimentos BRA, ao elevar os juros acima do esperado e já avisar o que fará na próxima reunião, o BC quis enviar um recado claro ao mercado. “O BC não se prendeu ao consenso, e com isso ele alinhou melhor as expectativas e enviou uma sinalização forte de que está comprometido com a meta de inflação”, disse Beck. “O BC eliminou qualquer dúvida de que poderia tomar um caminho mais longo e gradualista.”

A atitude firme de Roberto Campos Neto, presidente do BC, lembra a gestão de Ilan Goldfajn, que assumiu o BC na turbulência pós-impeachment de Dilma Rousseff. Ele encontrou uma situação de terra arrasada em termos fiscais e em que a política monetária tinha de ser apertada para compensar a incerteza das contas públicas. Não por acaso, a Selic estava em 14,25% ao ano. O antecessor de Campos Neto suou a camisa e gastou o verbo para convencer essa entidade indócil conhecida como mercado de que as coisas tinham mudado e que haveria comprometimento com o recém-aprovado teto de gastos. O resultado não tardou, e foi duradouro. Ao deixar o cargo, Goldfajn entregou uma taxa Selic estável em 6,5% ao ano e a situação mais previsível em termos de política monetária desde o início do Plano Real.

No Comunicado, comitê abandona tradição de usar linguagem sutil
e deixa claro que está contratado um novo aumento 0,75 ponto porcentual
na próxima reunião no início de maio

Campos Neto teve a competência de manter os juros no bom caminho da baixa, permitindo que a economia brasileira assumisse feições mais parecidas com as da normalidade mundial. Quando veio a pandemia, o BC pode acionar as ferramentas da expansão da liquidez e da redução das taxas nominais sem que a inflação disparasse. Até que a crise do início deste ano se instalasse, claro. Segundo Luciano Sobral, economista-chefe da gestora Neo Investimentos, a atuação errática do Executivo, que não demonstra claramente estar comprometido com o equilíbrio das contas públicas vem elevando o risco da economia. “Ninguém sabe qual será o déficit fiscal”, disse ele. E quando não sabe o risco, o mercado pede prêmio, algo que o BC sabe muito bem. “O Comitê ressalta, ainda, que questionamentos sobre a continuidade das reformas e alterações de caráter permanente no processo de ajuste das contas públicas podem elevar a taxa de juros estrutural da economia”, afirmou o Copom em seu Comunicado. Para o economista-chefe da Ativa Investimentos, Étore Sanchez, o Comitê avalia que o ajuste mais célere reduzirá a probabilidade de não cumprimento da meta para a inflação. “Ou seja, mesmo se piorar o BC irá elevar o juros”, disse.

DE OLHO EM 2022 Pode parecer um contrassenso elevar os juros num momento em que a economia brasileira parece querer submergir na recessão. No entanto, o alvo na mira do Copom não são os números deste ano, mas sim o que está previsto para 2022. Para os especialistas, preços perto do teto da meta são praticamente inevitáveis neste ano, tanto devido à alta do câmbio quanto pela persistente valorização das commodities. Segundo Sobral, basta observar a alteração das projeções para a inflação divulgadas semanalmente pelo Relatório Focus. “A velocidade da revisão de expectativas foi impressionante”, disse ele. “No início do ano o consenso era de uma inflação abaixo da meta, mas em poucas semanas a projeção passou a rondar o teto da meta.” E não deve parar por aí. “Os preços dos combustíveis já subiram bastante e ainda há uma defasagem em relação às cotações internacionais”, disse Almeida, da CM Capital. “O Comitê considerou que vê riscos reais de a inflação de 2021 romper o teto da meta, o que poderia prejudicar a inflação de 2022”, disse o sócio do escritório de investimentos 051 Capital Flávio Aragão. E todos concordam em um ponto. “A cada mês de 2021 em que a expectativa de inflação permanecer elevada, maior a probabilidade de que isso contamine o ano seguinte”, disse Sobral. E foi essa falta de espaço que levou Campos Neto a ser incisivo com a Selic.