Criado em 1952, no segundo mandato do presidente Getúlio Vargas, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) transformou-se, ao longo de seus 65 anos de existência, num dos motores do crescimento e da modernização do País. Nas diferentes fases de sua existência, foi o principal financiador  dos grandes projetos de infraestrutura  governamentais e fonte imprescindível para o investimento empresarial na indústria, serviços e no agronegócio.

Graças aos recursos provenientes do Imposto de Renda, nos primeiros tempos, ou do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), mais tarde, o banco pôde oferecer dinheiro mais acessível e de longo prazo a seus clientes, suprindo a lacuna deixada seja pela banca privada, com seu viés curtoprazista, praticante das taxas de juros mais elevadas do planeta, seja pela Bolsa de Valores, tradicionalmente limitada para suprir as necessidades do mercado de capitais.

No entanto. esse papel transformador, que colocou o BNDES, em 2015, entre os três maiores bancos mundiais de fomento (também conhecidos como Instituições Financeiras Públicas de Desenvolvimento –IFDs), atrás apenas do China Development Bank (CDB) e do alemão  Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW), passou a ser contestado internamente, nos últimos anos. À  medida que se aprofundava a radicalização política e avançava a crise que aflige  a economia, o banco tornou-se alvo de uma campanha de demonização e de questionamentos virulentos quanto a lisura de seus procedimentos, acusado de malversação do patrimônio público e de favorecimentos escusos.

Coube ao novo presidente do BNDES, Paulo Rabello de Castro, repor as coisas no devido lugar e mostrar ao distinto público que não, o banco, que teve entre seus mentores e como um dos primeiros presidentes o economista Roberto Campos, um ícone do liberalismo brasileiro, não havia se transformado numa espécie de “casa da mãe Joana” do sistema financeiro nacional ou num playground exclusivo de Joesleys, Wesleys, Eikes e Odebrechts.

Economista respeitado, da mesma tribo liberal de Campos, o segundo presidente do BNDES nomeado pelo presidente Michel Temer, tão logo assumiu o cargo, em maio passado,  encomendou aos seus quadros técnicos, um amplo balanço sobre as atividades da instituição, que completa 65 anos de existência em 2017. Produzido em menos de dois meses e batizado de Livro Verde, o cartapácio de 417 páginas, depois de uma relativamente  breve descrição das origens do banco, que só incorporou o “S” de social em 1982,  concentra-se nos últimos 15 anos de atividades – mais precisamente no período 2001- 2016.

No relatório são tratadas desde questões como as fontes de recursos, a posição relativa no mercado de crédito nacional, o funcionamento das carteiras de ações do BNDESpar, seu braço de participações, a qualidade dos créditos concedidos, passando por temas como o estímulo à inovação e sustentabilidade, até chegar aos assuntos mais polêmicos, como a chamada política de campeões nacionais e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras, com lugar à defesa de projetos em países como Cuba e Angola.

Na introdução ao trabalho, Rabello de Castro faz uma veemente defesa do Banco e da atuação de seus antecessores no comando.“Nunca pairou dúvida, até período bem recente, no sentimento da opinião pública e das lideranças nacionais, sobre se o esforço do País em financiar com tributos um banco de fomento como o BNDES teria valido a pena”, afirmou. Mais adiante emendou: “o Livro Verde é uma singela contribuição para tornar esse debate o mais amplo e bem informado  possível, sem a inconveniente repetição de fantasias ou “pós-verdades” sobre as atividades do banco, que não servem senão para poluir a cristalina história de uma instituição vencedora.”

A concentração da análise na última década e meia de atuação do BNDES não se dá por acaso, mostra Rabello de Castro. “Os últimos 15 anos seria, em uma certa narrativa vulgar, associados a uma nova e polêmica direção, a de pré-selecionar “campeões nacionais”, uma meia dúzia de privilegiados, detentores de acesso diferenciado e restrito a verbas bilionárias, a eles atribuídas pelo Banco de modo territorialmente concentrado e para enriquecimento sem causa de uns poucos capitães de indústria”, afirmou.

Segundo ele, ao contrário, os números indicam que houve, no período citado, um movimento justamente oposto, na concessão de recursos. Os montantes destinados às pequenas e médias empresas, que entre  1996 e 2000 representavam 15%  dos desembolsos totais do BNDES, dobraram para 32%, ao final de 2016. De acordo com o relatório, esse segmento recebeu nada menos de R$ 695,4 bilhões, entre 2001 e 2016.

O restante dos recursos aplicados foram destinados às grandes empresas, negócios com receitas superiores a R$ 90 milhões. Nos 15 anos, os desembolsos do Banco totalizaram R$ 2,47 trilhões, em valores constantes de 2016. No período, os maiores desembolsos anuais aconteceram em 2009 e 2010, com R$ 234,3 bilhões e R$ 266,9 bilhões, em resposta  do governo à crise financeira internacional  do final da década passada.Em decorrência desse esforço, a participação do desembolsos do BNDES em relação ao PIB aumentou de 2,2% entre 2001 e 2008 para 3,7% nos cinco anos seguintes.

O reforço da participação do BNDES no  sistema de crédito nacional durante a crise evidenciou, mais uma vez, uma distorção: a crônica ausência  das instituições financeiras privadas  na oferta de financiamento de longo prazo, no País. De acordo com o Livro Verde, 90% dos créditos concedidos com prazo superiores a cinco anos ficaram  por conta dos bancos oficiais, incluídos o Banco do Brasil e a Caixa.  Isoladamente, o BNDES responde por 53% do total. Detalhe: a Itaúsa, holding que controla o Itaú Unibanco, o maior banco privado nacional, e companhias industriais, como a Duratex e a Eleikeroz, é uma das grandes tomadoras de recursos do Banco (veja a tabela abaixo).

Em consequência e não por acaso, a exemplo da Itausa, nada menos de 783 dos maiores grupos empresariais locais recorreram a empréstimos do banco de fomento, nos últimos 15 anos, para sustentar seus investimento aqui e no exterior. Entre os 50 maiores, 14 são estrangeiros, de setores como automotivo, energia, telecomunicações e mineração.“Diante do exposto, não se pode afirmar que o BNDES tenha escolhido  um ou outro grupo nacional para ser campeão em detrimento de seus competidores nacionais ou estrangeiros”, diz o Livro Verde.

Prova disso, é a posição da J&F, controladora da JBS, que  juntamente com o falecido grupo X, do empresário Eike Batista, costuma ser apontada como uma das  principais beneficiárias da política de campeões nacionais. Num ranking em que a Petrobras e a Embraer aparecem em primeiro e segundo lugares, com R$128,5 bilhões e R$ 85,9 bilhões de empréstimos e financiamentos,respectivamente, a J&F aparece na 19ª posição, com R$ 14,9 bilhões. Detalhe 2:  enquanto a Embraer, a segunda colocada, teve receitas de R$ 21,4 bilhões, no ano passado, a J&F, dona da JBS,  Eldorad o Celulose, Vigor  e  Alpargatas, entre outras, faturou R$ 183 bilhões.

Alvo principal da temporada de caça aos “campeões nacionais”, principalmente após a rumorosa delação do empresário Joesley Batista,  a JBS, carro-chefe da J&F, não foi o único player importante do setor de proteína animal a receber aportes significativos do banco estatal. Ela é seguida de perto pela  BRF, que recebeu R$ 13,1 bilhões, com um faturamento (R$ 33,7 bilhões em 2016) equivalente a menos de 20 % do obtido pela rival.

O investimento nos frigoríficos nacionais, incluídos nomes como Marfrig, Minerva e Bertin, que totalizou R$ 31,2 bilhões, entre  2005 e 2016, é justificado no Livro Verde por atender a dois objetivos principais:por um lado, consolidar o Brasil como o maior exportador mundial de proteína animal. Pelo outro, fazer do Complexo Carnes a principal fonte de divisas do agronegócio.

Do ponto de vista exclusivamente dos negócios, descontado o envolvimento em escândalos, como o pagamento de propinas a políticos pela JBS,  e na Operação Carne Fraca, que atingiu também a BRF, deu certo. Quando recebeu o primeiro aporte do BNDES, em 2005, para a aquisição das operações da americana Swfit, na Argentina, a JBS faturava R$ 4 bilhões anualmente. Onze anos depois, a JBS transformara-se num gigante com receitas de R$ 170 bilhões, 71% delas obtidas no exterior, tornando-se a número um global do setor de proteína animais, com produção nos Estados Unidos e Austrália.

Na visão do Livro Verde e do próprio Rabello de Castro, não há do que reclamar, do ponto de vista estritamente financeiro, da relação da  BNDESPar, o braço de participações do Banco, com a JBS.“Foi um dos negócios mais bem bolados e bem sucedidos da BNDESPar”,afirmou Rabello de Castro, na entrevista de lançamento do Livro Verde. Ao todo, o apoio do Banco, via mercado de capitais, somou R$ 8,1 bilhões. Em contrapartida,  computados dividendos, comissões, venda e valorização de ações (o BNDES detém 20,3% do capital da empresa), o saldo líquido das operações chegou a R$ 3,56 bilhões.

Rabello de Castro lembrou que, “até a lambança da delação”de Joesley Batista, em maio passado,  as ações da companhia, estavam cotadas a mais de R$ 10. Depois da divulgação da gravação envolvendo o presidente da República, voltaram a valer R$ 7, preço pelo qual foram adquiridas em 2005. A queda, motivada por fatores essencialmente políticos, é minimizada pelo presidente do BNDES. “Queda de preço momentânea não é prejuízo”, afirmou.

À experiência da JBS, o Livro Verde agrega os casos vitoriosos, do plano estritamente econômico-financeiro, repita-se,  de companhias bem sucedidas no mercado interno, que buscaram na internacionalização um novo campo para o seu crescimento. Fazem parte da lista grupos como Gerdau, BRF, Embraer, Weg, Natura, Odebrecht, Ambev,Oxiteno, Totvs e Vale, entre outras.“Os campeões, quando surgem –e isso acontece quase sempre –, não decorrem de uma seleção discriminatória e prévia do Banco, mas vitoriosa apropriação de oportunidades pela própria empresa ou pelo ente público colaborado”, afirmou Rabello de Castro. “Os verdadeiros campeões se fazem; não são feitos por falso milagre de quem quer que seja .”

Na introdução do Livro Verde,  Rabello de Castro não deixou de investir contra outra inverdade, que tem assumido ares  de verdade nos últimos tempos: a de que a política de crédito subsidiado e os interesses políticos teriam colocado o Banco numa situação de quase insolvência.  “O Banco não faz favor nem prática caridade pública”, escreveu, referindo-se às operações financeiras. “Em bom português, o BNDES tem de apresentar lucro líquido.” Segundo ele, a soma de tributos e dividendos pagos ao Tesouro no período 2001-2016 chegou a R$ 129,7 bilhões. “Resta claro e inequívoco que o BNDES nunca desperdiçou  recursos preciosos do povo nem jamais os aplicou de forma temerária”, afirmou Rabello de Castro.