Se recai nos idosos o maior risco de mortalidade diante da pandemia do coronavírus (Covid-19), reside nos jovens e trabalhadores informais o problema mais grave quando o tema são os impactos da crise global na economia brasileira. Com medidas vagas e de difícil execução por parte do governo federal, os quase 40 milhões de trabalhadores autônomos podem perder até 80% da renda mensal antes que o surto arrefeça, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).

Para se ter uma ideia da dimensão e importância dos autônomos na geração de renda no País, em 2019, ainda segundo o IBGE, 11 estados brasileiros possuíam mais da metade dos trabalhadores atuando de modo informal. No ano passado, dos 1,89 milhão de empregos gerados, 1 milhão foi nessa condição. Entre os informais há centenas de milhares de motoristas de aplicativos, vendedores de comida, cabeleireiros e domésticas que dependem da demanda para prover recursos ao lar. “O pacote de medidas do governo não é ruim, mas não atente toda a atividade econômica”, afirma José Leitão, doutor em macroeconomia e professor de gestão pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Depois de lançar um primeiro pacote de medidas que não incluíam os trabalhadores autônomos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou a possibilidade de oferecer um voucher de R$ 200 para os informais. A medida deve ter um custo de R$ 18 bilhões e não esclarece como serão mapeados e contatados esses trabalhadores. “Guedes citou o Imposto de Renda como balizador. Mas, segundo a Receita Federal, 75% dos informais não precisam declarar IR”, diz Leitão. A Medida Provisória que estabelece os repasses terá validade imediata e duração de três meses.

Aos demais empresários, a medida do governo também permite algumas mudanças no quadro de funcionários, abrindo brecha, inclusive, para diminuição de horas trabalhadas e salários. Há ainda a possibilidade de, em meio a uma queda brusca no movimento em função do isolamento das pessoas, o governo permitir uma espécie de “desligamento temporário” da mão de obra, condição equivalente ao seguro desemprego, até o surto diminuir. Vale lembrar que a reforma trabalhista e a lei de terceirização facilitam a contratação “flexível” e os trabalhadores nesses regimes não foram contemplados no pacote. Mauro Caran, da Proxy Consultoria, aponta outro problema. “Os contratos intermitentes, em que a pessoa não será solicitada e fechará o mês sem recursos”, diz.

Taxista desde 2018 em São Paulo, José Silva Cortês já sente a queda acentuada na demanda. “Na última semana fiz só 25% das corridas. Estou preocupado porque pago o carro e a licença de táxi”, afirma. A cabeleireira Rita Leoncio, também da capital paulista, diz que o fluxo do salão sumiu desde o fim de semana do dia 13 de março. “Ouvi dizer que ainda vai piorar. Eu não sou contratada, ganho comissão. Se não tiver cliente, não tenho renda”. Cada um calcula que deixará de gastar, em média, R$ 3 mil por mês em produtos para atender à demanda habitual — caso, respectivamente, do combustível, e de itens como tinta para cabelo. “Esses gastos são tributados. Imagine só milhares de trabalhadores na mesma condição? O governo terá menor arrecadação”, diz o econimisra Caran, da Proxy. Outro desafio, segundo ele, será a falta de caixa das empresas.

25 DE MARÇO VAZIA: Na mais tradicional rua do comércio popular de São Paulo o fluxo é mínimo e a partir de segunda-feira 23 as lojas deverão, por decisão da prefeitura, estar fechadas. (Crédito:Suamy Beydoun)

Na perspectiva de três meses sem faturamento, grande parte dos empresários se encontram numa saia justa. “Os lojistas de shopping , por exemplo, arcam com contas altíssimas na operação”, diz Leitão, da UFRJ. Tito Bessa Júnior, presidente da entidade que representa os lojistas satélites nos malls (Ablos), avalia que mais da metade das lojas podem quebrar caso não haja revisão das obrigações de pagamento dentro do centro de compra. Fora dos shoppings, a situação do varejo também é complexa. A prefeitura de São Paulo determinou o fechamento temporário de operações varejistas que não sejam de alimentação, supermercado, feira-livre, postos de gasolina e farmácia. “Não conheço nenhum lojista que tenha caixa para se manter três meses”, afirma Caran, da Proxy.

CALAMIDADE PÚBLICA A piora na atividade, que segundo consultorias internacionais pode reduzir o PIB de um país entre 3% e 14%, dependendo do grau de contágio, já é sentida no Brasil. Por isso o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso, na quarta-feira 18, um pedido para colocar o País em situação de calamidade pública, com duração até dezembro de 2020. O objetivo, segundo texto publicado no Diário Oficial da União (DOU), é evitar a paralisação da máquina pública e abrir brechas para investimentos para contornar a atual situação. Hoje, caso precise investir mais em saúde pública, por exemplo, o governo corre o risco de ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que caracteriza crime de responsabilidade. “Espera-se, porém, que essas medidas sejam capazes de suavizar os efeitos sobre a saúde da população e pelo menos atenuar a perda de produto, renda e emprego no curto prazo e facilitar o processo de retomada”, dizia a mensagem presidencial. O texto foi aprovado ainda na quarta-feira pelo Congresso.

Quem quer máscara? Vendedores ambulantes vendem máscaras para os cidadãos que ainda precisam se deslocar nas cidades para trabalhar. (Crédito:Silvia Izquierdo)

Além do estado de calamidade, o governo federal anunciou medidas para tentar amortecer os efeitos econômicos. Segundo o ministério da Economia, serão empregados R$ 147,3 bilhões que envolvem, por exemplo, a antecipação do décimo-terceiro de aposentados e pensionistas do INSS e do abono salarial, além de reforço no programa Bolsa Família e ações de combate à pobreza. À DINHEIRO, o ecretário Especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, disse que o governo pode encaminhar medida provisória para acelerar o saque do FGTS: “O valor ainda está sendo estudado e será divulgado em breve”, afirmou.

Para tentar conter o desemprego, o líder do governo no Congresso Nacional, Eduardo Gomes (MDB-TO) avalia a construção do projeto para que se suspenda os contratos de trabalho de setores mais atingidos pela crise. O objetivo seria que a suspensão valesse de 90 a 120 dias, período em que o trabalhador receberia um seguro-desemprego. “A medida está em avaliação, mas ela seria positiva nesse momento”, disse o parlamentar. Caso aprovada, a decisão poderia beneficiar 6 milhões de brasileiros, mas irá gerar uma despesa de R$ 18 bilhões aos cofres públicos. “As empresas teriam um alívio e os trabalhadores não ficariam sem renda.”

Para os pequenos e médios empresários foi anunciada oferta de recursos tanto em forma de crédito como repasse. “Esse é um choque de oferta necessário para as empresas atravessarem a crise com capital de giro”, afirma o economista-chefe da consultoria MB Associados, Sergio Vale. Para Ernani Reis, da Capital Research, medidas como o adiamento do pagamento do Simples Nacional e redução de 50% nas contribuições do Sistema S são importantes, mas não resolvem todo o problema. “Exemplo foi a não inclusão de incentivos mais específicos para os setores de aviação e turismo.” Na coletiva de ontem, o governo chegou a aventar a possibilidade de socorro às aéreas e setor de turismo, mas a medida fica condicionada a aprovação do Congresso (leia mais na página 36).

Queda no fluxo de passageiros: Taxistas reportam diminuição de até 75% nas corridas nas últimas duas semanas. (Crédito:Aloisio Mauricio)

Para sinalizar a harmonia entre os Poderes da República, na noite da quarta-feira 18 Bolsonaro se encontrou com o presidente do Supremo (Dias Toffoli) e o procurador-geral da Repúplica, Augusto Aras. O encontro não teve a participação do presidente da Câmara (Rodrigo Maia) nem do Senado (Davi Alcolumbre, que está entre os casos confirmados de Covid-19). O encontro terminou com uma mensagem em rede nacional, recebida pela população ao som de panelaços em sinal de protesto por todo o País, acompanhados de uma inédita explosão de “fora, Bolsonaro!”

PÂNICO O sanitarista e ex-secretário adjunto do ministério da Saúde Marcelo Paiva afirma que, além de medidas econômicas, é preciso pensar em políticas públicas de saneamento. “Cobrar que as pessoas lavem as mãos quando muitas não têm água encanada em casa é uma piada”, diz. O médico, que está hoje no comitê de crise do Governo do Estado de São Paulo, afirma que de nada adianta medidas econômicas se a transmissão segue alta por falta de saneamento básico — segundo o Instituto Trata Brasil 89% dos lares não possuem esgoto tratado. Frente a esse desafio, Paiva defende a revisão do teto dos gastos. “Furar o teto para ajudar empresas é desnecessário, mas para ajudar cidades a ter água potável faz todo sentido”, diz. Para o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco de Lima Gonçalves, é preciso uma elevação do orçamento público neste momento pois as medidas adotadas até agora só empurram o problema. “Antecipar FGTS terá efeito de conforto sobre a população, mas é questionável o efeito na economia.” Segundo ele, ao invés de a pessoa receber o décimo terceiro no final do ano, ela recebe agora. “O que ela fará lá no final de 2020?”, questiona. “Quanto às empresas, é a mesma coisa, elas vão deixar de recolher 10% de imposto agora para, em junho, recolher 20%. Então, eu não sei até que ponto isso realmente preserva os empregos”, diz.

Enquanto o mercado calcula perdas e o brasileiro faz as contas para fechar o mês, resta a dúvida sobre como sobreviver à pandemia: na base paliativa do álcool gel ou com medidas que criem uma vacina capaz de imunizar a economia no médio e longo prazo.

O bom exemplo oriental

DEU CERTO: Na Coreia do sul, a rapidez para indicar isolamento de pessoas e a resposta
ágil para esterilização de espaços já reduziram o contágio. (Crédito:Jung Yeon-Je)

Num momento de tantas incertezas, existe uma certeza. Quanto melhor passarmos pela crise do covid-19 o custo humano e econômico será menor. E, se o Brasil quiser seguir modelos bem sucedidos, que olhe para o Oriente. A resposta de diversos países da região foi eficiente de tal forma que o epicentro da pandemia, que começou em dezembro, em Wuhan, na China, passou a ser a Europa, em março. Em especial, a Itália. A grande diferença está nas respostas rápidas dos asiáticos.

Países próximos da China, como Taiwan, Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Austrália, fizeram isolamento social assim que o primeiro caso foi confirmado. Hoje eles são a referência na gestão da crise. Por outro lado, a Itália desdenhou a situação, com a falsa sensação de que se tratava de uma gripe forte. Quando o primeiro caso foi confirmado, já era de contágio interno, não de estrangeiro ou viajante . Segundo o Conselho Federal de Medicina, em semanas, o sistema de saúde colapsou pela quantidade de doentes graves e mortes.

“Minhas contas sugerem que o brasil levaria até o fim de abril para acumular 50 mil casos da doença” Armando Castelar Pinheiro Coordenador de economia do IBRE/FGV.

No Ocidente, em geral, a expansão se deu em progressão geométrica. “Os países quentes que tiveram melhores resultados do que os frios são todos que viveram o surto de Sars, em 2003, ou o Mers em 2015”, diz Claudia Feitosa-Santana, neurocientista com pós-doutorado pela Universidade de Chicago e professora da Casa do Saber. “Tomaram ações imediatas desde o primeiro dia que souberam que havia um novo coronavírus na China. Os americanos, brasileiros e portugueses fizeram a mesma coisa com os cidadãos que chegaram de Wuhan, mas não continuaram assim.” Até a última semana, Taiwan registrava apenas uma morte, e Cingapura, nenhuma. Depois de controlada a explosão de casos, os trabalhadores cingaleses voltaram a trabalhar num regime de 50% da capacidade.

Mas esse é o único segredo dos orientais? Além do confinamento rápido, os asiáticos possuíam aparato técnico e equipamentos por conta dos surtos das últimas duas décadas. A Coreia do Sul chegou a perder o controle em certo ponto, no início da pandemia, mas logo conteve a alta. Para isso, a Coreia chegou a fazer 10 mil testes diários, rastreando melhor a epidemia ao ponto de “seguir” os pacientes por imagens de videovigilância, usos de cartões e localização do celular.

No Brasil, autoridades relutaram em incentivar o isolamento da população para não afetar a economia. Não percebiam que a estratégia nos jogaria no modelo de contaminação italiano, com perdas maiores. O ministro da Saúde, Luiz Mandetta, disse na quarta-feira que o modelo coreano não poderia ser seguido pois país tem apenas 4 milhões de habitantes. Ele está errado. São 51 milhões, e a diferença não é de tamanho, mas que não temos a capacidade de testar a população por falta de reagentes importados.

Enquanto no Ocidente os contaminações crescem de modo geométrico, nos países exemplares o avanço do casos atingiu um platô rapidamente, evitando superlotação dos hospitais. Nos próximos dias, os economistas olharão com atenção quanto sobe o número de novos casos diariamente. A previsão é saltar 33% ao dia, dobrando o número de infectados a cada 24 ou 48h e multiplicando por 10 em 10 dias. A tendência é que essa cifra suba até o pico e comece a cair. Isso sinaliza quanto tempo a circulação de pessoas será desencorajada, e preve os impactos econômicos.

Segundo Armando Castelar Pinheiro, coordenador de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, o Brasil atingiu na terça-feira 17, avanço médio de 26% no número diário de novos casos. Na Itália, que duas semanas antes estava similar ao Brasil (25%), foi a 13%. Se o Brasil seguir a Coreia, onde 0,0151% da população estava infectada no início da semana passada, teríamos 31.776 infectados até o surto arrefecer. Na progressão italiana, de 0,024% da população doente, seriam 51.256 infectados. “Minhas contas sugerem que o Brasil levaria até o fim de abril para acumular esses 50 mil casos e então a curva começa a cair”, diz Castelar.

Passado o pico, o retorno às ruas será paulatino, já que o número não pode subir de novo. Relatórios americanos citam até 12 meses para normalidade, mas são quatro meses para sair do momento crítico. Obviamente que esses números e prazos também dependem do grau de isolamento e cuidados que as pessoas vão adotar. O Brasil e o seu governo quer que sejamos como a Coreia ou como a Itália?