Autorizadas pela Prefeitura, parte das escolas públicas e privadas de São Paulo reabriram no dia 7, com atividades presenciais extracurriculares. Nas últimas duas semanas, o Estadão acompanhou a rotina de duas professoras do Colégio Visconde de Porto Seguro, um dos mais tradicionais da cidade, que optou por voltar depois e aos poucos. No diário abaixo, elas relatam o dia a dia das aulas, divididas entre os meios virtual e físico, e as mudanças por causa do coronavírus.

Daniela Bogolenta, de 45 anos, se dedica há 26 ao ensino infantil e nem na licença maternidade havia passado tanto tempo sem encontrar os alunos, que têm entre 5 e 6 anos. Na quarentena, começou dando aula da sala de jantar, mas precisou encontrar outro espaço melhor depois que a família comentou que já sabia o nome de todas crianças e andava difícil até falar no celular por causa da barulheira.

Para as classes online, os 20 alunos foram divididos em duas turmas. A primeira começa às 8h30. Mais cedo, ainda trabalha com grupos menores, que precisam de abordagens mais específicas. Nem por isso deixa de lado os afazeres domésticos, como o banho do Paçoca, o salsichinha que virou xodó da meninada durante o isolamento.

Já Renata Maran Longuini Romero, de 39 anos, tem duas filhas e monopolizou o quarto de estudos para dar aulas de Língua Portuguesa. Os alunos são dos 8º e 9º anos do fundamental. Nas aulas virtuais, sempre deixa o computador e o celular conectados para não ser pega de surpresa no caso de queda de rede. Ela participou das discussões de protocolos de segurança na escola e se sente segura. “Sei que a pandemia é séria e não existe risco zero de contágio, mas sinto que estamos prontos para retornar.”

A seguir, o diário feito pelas professoras para o Estadão:

Terça-feira, 13 de outubro

Renata: Foi muito gostoso voltar à escola depois de sete meses em casa, mesmo que só para visitar. Está tudo reconfigurado! Há adesivos de sinalização espalhados, as carteiras nas salas foram redistribuídas e trocaram até os bebedouros. Também deixaram um monte de frases expostas: “Juntos, cuidamos de nós”. Achei emocionante. Apesar da autorização da Prefeitura, o colégio decidiu fazer visitas de acolhimento primeiro. Enquanto isso, as aulas continuam normalmente, ou seja, online. Cheguei por volta das 14h35 e só acompanhei dois alunos do 9º ano. Ficaram um pouco acanhados, talvez por estar em grupo pequeno, mas foram bastante cuidadosos com as medidas de segurança. Após fazer um alongamento na quadra, visitamos a nossa sala, que agora tem câmera para transmitir as aulas. Tirei foto de tudo e saí compartilhando no grupo dos professores. Parecia até que estava em um safári.

Quarta-feira, 14 de outubro

Daniela: O dia começou bem cedo. Às 7 horas, antes de iniciar as aulas com a crianças, tive de assistir a uma série de vídeos sobre os protocolos e responder um questionário com dez perguntas do tipo: “Face shield dispensa o uso de máscara?”. Faz parte da preparação para a volta. No meu caso, será só na semana que vem.

Quinta-feira, 15 de outubro

Renata: À tarde, estive novamente na escola com outro grupo de estudantes. Desta vez, apareceu um número maior – seis alunos, do 8º ano. Impressionante como eles cresceram. São alunos carinhosos e estavam com saudade. Ganhei chocolate e outros presentes. Senti mais falta do abraço nesta visita do que na anterior. Deu uma tristezinha ficar olhando para o pessoal a um metro e meio de distância, mas é necessário.

Daniela: Amanhã vou fazer o tour no colégio. A orientação é não abordar o assunto com as crianças, porque a atividade depende de autorização da família. À medida que o retorno vai se aproximando, a ansiedade aumenta. Já passei por fases de insegurança, de medo, de questionar se vale o risco vale a pena. Não tem como falar em garantia, só se for divina. Talvez, ficar muito presa em casa também dê uma sensação maior de perigo. Talvez, ver o espaço transformado ajude a equalizar esse sentimento. Não sei. Estou com saudade de encontrar as pessoas, olhar ao vivo, sentir o cheiro da escola de novo.

Sexta-feira, 16 de outubro

Daniela: Voltar fisicamente à escola foi um dado de realidade que estava faltando. Passei por aferição de temperatura na entrada, recebi um kit de máscaras e um crachá novo, feito de plástico, mais fácil de higienizar. Cheguei às 17 horas, depois das aulas online e do fórum dos professores. As crianças já tinham ido embora, mas deixaram um voucher para um spa de presente, uma maravilha. Junto, havia um bilhete escrito pelos pais: “Obrigado por transformar nossos dias de quarentena em dias de descobertas e aprendizados”.

A visita durou mais de uma hora e a gente andou bastante. O professor de Educação Física mostrou as adequações em cada espaço e reforçou medidas de segurança. É muita coisa para lembrar, mas acredito que vamos automatizando aos poucos. Ao mesmo tempo, me senti feliz e um pouco estranha. Trabalho na escola há dez anos, então é um lugar muito familiar para mim. Bateu uma sensação de que vamos usá-lo de forma diferente.

Renata: A visita passada repercutiu entre os alunos. De manhã, tive de explicar para parte dele que a atividade dependia do aval dos pais e relembrar que nenhum conteúdo novo seria abordado nos contraturnos. “Queria ter ido, mas a minha avó mora com a gente. Minha mãe ficou com receio”, comentou um deles. Achei bom ter falado sobre o tema.

Também abordamos o projeto Memórias da Quarentena, para expressar os sentimentos deste período. Está em fase de produção espontânea, então eles escrevem poemas, desenham, fazem o que achar mais adequado. Participei tirando uma foto da tela do meu computador, que fica exatamente na frente da janela. Há sete meses, só vejo prédios e árvores. Se tem algo que não vou esquecer, é aquela janela.

Segunda-feira, 19 de outubro

Daniela: Sempre começo a semana falando de sábado e domingo, com alguma pergunta como disparador. Dessa vez, foi: “Do que vocês brincaram?”. É importante que eles sintam a passagem dos dias para que também construam a própria memória. Ainda fizemos uma atividade em que os alunos recebiam três palavras e precisavam elaborar uma frase. Com o confinamento, o estímulo da oralidade é um grande desafio.

Algumas crianças comentaram sobre o tour. Lembraram até que um trabalho anterior à quarentena, quando a turma fez desenhos com fios lã, continuava colado na janela: “Ah, dona Dani, está tudo do mesmo jeito!”. Entendi que eles estavam se reconhecendo de novo naquele espaço. De certa forma, foi um conforto.

Renata: Passei a tarde anterior me preparando para o grande dia – minhas aulas voltaram às terças e quintas. Finalmente vou rever meus alunos na sala e usar a lousa. Nada de tela! Quero um exercício que os desperte e, ao mesmo tempo, represente um abraço. Não pode ser algo puxado. Como temos visto Manuel Bandeira, pensei em pedir para escreverem como seria a sua própria Pasárgada, onde, como diz a poesia, a existência é uma aventura e mesmo nas noites tristes somos amigos do rei.

Terça-feira, 20 de outubro

Renata: Nossa, nenhum aluno apareceu para a primeira aula, das 15h10. Soube depois na secretaria que os estudantes dessa bolha, a divisão por grupos menores, ainda estava com outras atividades à tarde e avisaram que só voltariam na próxima semana. Fiquei frustrada.

Foram três alunos da bolha seguinte. “Ufa, achei que seria abandonada”, brinquei. Cada um sentou em uma ponta da sala, bem distantes, e como foram só 40 minutos nem deu tempo de descuidar dos protocolos. Emocionalmente, estou tranquila. Incomodou a máscara no rosto. Tem de ajustar o ritmo da respiração, falar pausadamente, ou você fica ofegante rapidinho.

Quarta-feira, 21 de outubro

Daniela: Mostrei o calendário e um garoto disse que eu havia esquecido alguma coisa. Era aniversário do dindo dele. Perguntei como poderíamos resolver, porque o costume é marcar só as datas da turma, e isso virou uma conversa boa sobre família. Uma criança também comentou que faz aniversário amanhã, mas estaria ausente porque ia viajar. “Quando você voltar, a gente canta parabéns”, as outras responderam. Pode parecer que não, mas a quarentena serviu para aproximar as pessoas.

No Pequeno Cientista, um projeto da escola, os meninos já tiveram de pensar como a água chegava até a torneira de casa. Na semana passada, houve palpite de toda sorte: chuva, rio, nuvem. Hoje, falamos de tratamento. Com peneiras e filtros, eles “limparam” a água misturada a arroz, feijão, grão de bico, pó de café. Foi a maior bagunça, os pais que não devem ter ficado muito felizes. Em uma das turmas nem deu tempo de começar Como Contar Crocodilos, de Margaret Mayo, a leitura planejada.

Quinta-feira, 22 de outubro

Renata: Estou muito contente – os oito alunos da primeira bolha e seis da segunda foram para a escola. Até brinquei com um deles, que nas classes virtuais quase nunca liga o microfone. “Ah, então quer dizer que você anda acompanhando as aulas mesmo?! Pensei que nem iria aparecer hoje.”

Os meninos estavam cuidadosos: usaram álcool em gel, ficaram nos seus lugares, não precisei ralhar nenhuma vez. O exercício proposto, da Pasárgada, foi o mesmo. Hoje, rendeu mais. Uma menina escreveu que não haveria fronteiras e seria possível viajar para qualquer lugar. Outros falaram de poder jogar futebol na quadra ou ver os amigos noite e dia. Na maioria dos textos, Pasárgada era o lugar onde “todos têm saúde”, “a medicina é avançada” e “não existe coronavírus”.

Sexta-feira, 23 de outubro

Renata: Sabe o aluno com quem fiz uma brincadeira ontem? Hoje, foi o primeiro a abrir o microfone e dar bom-dia. Durante a pandemia, uma das coisas mais importantes é a manutenção desse vínculo.

Daniela: “É hoje que a gente vai, dona Dani?”, foi a primeira pergunta que me fizeram, logo quando entrei na live. Os meninos estavam bem animados com a perspectiva de voltar ao colégio. Durante a aula, propus alguns desafios numéricos, lemos histórias e uma criança pediu para ver o Paçoca, porque queria apresentá-lo ao cachorrinho novo de casa.

Passei a manhã feliz e apreensiva. Será que carrego a bolsa comigo ou deixo no carro? Se eu levar alguma coisa para comer, onde vou guardar? Todas essas coisas eram automáticas antes, mas agora a gente precisa construir novos hábitos. Fui ouvindo a voz deles chegando no corredor e fiquei nervosa para receber as crianças. Parecia minha estreia na sala de aula.

Tão engraçado! Eles têm o ímpeto de vir abraçar, mas aí dão uma brecadinha. Sentamos em um círculo grande. Fui olhando de um em um e dizendo: “A gente existe”. Falei com todos eles. “Olha só, o seu dente caiu! Que legal!” Uma criança contou que pegou covid e as outras ficaram curiosas. “Só senti dor no corpo, mas não foi assustador.”

Eles estavam com vontade de brincar e fomos jogar uma trilha na área externa. Mais agitado, um menino acabou trombando em outra criança, que caiu. Corri para ver se alguém se machucou, mas foi a própria aluna quem fez a advertência: “Nãããão, vai pegar coronavírus!”. Estar reunida de novo com a turma me fez pensar que o benefício de estar junto é maior do que o risco. Tem de ser assim: um cuidando do outro. Acho que, hoje, reinaugurei minha escolha profissional. Eu amo muito ser professora.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.