A55ª reunião anual do Fundo Monetário Internacional, em Praga, começa como a mais irônica da história. Há 32 anos a capital da República Checa foi invadida pelos tanque soviéticos, no golpe que esmagou o projeto de ?socialismo com face humana? do presidente Alexander Dubcek. O reformista foi deposto, o ?socialismo real? se impôs sob força de armas e, com o protesto solitário de um estudante que jogou gasolina sobre o próprio corpo e ateou fogo, encerrou-se o episódio conhecido como ?Primavera de Praga?. Agora, num outono onze anos depois da queda do Muro de Berlim, os representantes oficiais do capital internacional se reúnem ali, cercados por 20 mil manifestantes que protestam contra o capitalismo globalizado. A reunião acontece no Palácio da Cultura, em Praga, um monumental edifício de 35 mil metros quadrados, com seis auditórios e 800 escritórios, construído para abrigar os congresssos do Partido Comunista ? já depois da invasão soviética. O prédio, inaugurado com estrondo depois de seis anos de obras, serviu à sua função original por menos de uma década. Em 1989, com o fim do comunismo, ele foi transformado num centro de convenções. A reunião do FMI marca sua reinauguração, depois de uma reforma bem capitalista. Agora, anunciam os organizadores, ele deve se transformar no maior pólo de turismo de eventos da Europa Oriental.

A reunião, que seria inimaginável vinte anos atrás, tem os sinais trocados também quando se chega ao discurso dos palestrantes. Para acalmar a ira dos manifestantes ? e das multidões que eles representam ? o presidente do Fundo, Horst Köhler, disse em seu primeiro discurso à testa de uma reunião anual que ?as enormes desigualdades de renda no mundo se tornaram uma grande ameaça à paz e ao bem-estar futuro?. Admitiu que a economia global, ?até o momento, não está beneficiando a todos?. E irradiou esse tom para o restante dos pronunciamentos oficiais do FMI e do Banco Mundial. Os documentos divulgados pelas duas instituições durante o evento dedicam um espaço tão grande aos miseráveis e à desigualdade que, no passado, pareceriam fora do lugar até se fizessem parte de estudos da Unesco ou da Unicef. Um dos principais pontos da pauta da reunião é a anistia de parcelas das dívidas externas dos países pobres. Além do pacote de dez nações hoje beneficiado com descontos (que vai de Uganda à Bolívia), o grupo dos ricos está disposto a reduzir US$ 17,8 bilhões da dívida de dez outros países (Nicarágua, Guiana e oito Estados africanos).
 

O tom politicamente correto dos pronunciamentos incluiu até um agrado ao Brasil. Köhler, em seu discurso inaugural, disse que ?chegou a hora de os países ricos entenderem as durezas e sofrimentos que os programas de ajustes vêm impondo a países como o Brasil?. Bonito. O problema é que, no que depender do FMI e do Banco Mundial, o País terá cada vez mais de aprender a se virar sozinho. A mesma lógica que relaxou a corda para os mais pobres vai dificultar o acesso de países como Brasil, México e Argentina aos cofres das instituições internacionais. As duas organizações, que dependem fartamente do caixa dos Estados Unidos, adotam um discurso de independência, mas na vida real se aproximam cada vez mais das posições do secretário do Tesouro americano, Lawrence Summers. Ele defende que o FMI guarde seu dinheiro apenas para apagar grandes incêndios internacionais, como o causado pela crise da Ásia, e que o Banco Mundial dirija seus financiamentos somente para países muito pobres.

No início do ano, o Congresso americano aprovou um relatório que sugere que o Bird deixe de ajudar a América Latina, dedicando-se somente a países africanos e asiáticos muito pobres. Nesse caso, daria preferência a doações, em lugar de empréstimos. Diretores do Fundo não chegam tão longe, mas deixam claro que a política é de desencorajar novos empréstimos a países que já foram bater à sua porta. As condições também se tornarão bem menos atraentes. Quatro linhas de crédito foram simplesmente extintas. Os empréstimos de longo prazo terão sua duração máxima reduzidas de 10 para 7 anos. E as taxas de juros também se tornarão menos camaradas. O efeito esperado a curto prazo é fácil de entender. O Fundo ficará com um caixa gordo (já tem US$ 97 bilhões, um recorde), que será usado apenas em emergências. Categoria que tende a ser cada vez mais rara. A Linha de Crédito Contingente, CCL, criada depois da crise da Ásia para socorro a curto prazo, nunca chegou a ser usada, porque seus juros são muito proibitivos.

As contradições entre o discurso e a realidade serviram apenas para aguçar a hostilidade das ONGs contra o Fundo. Depois do discurso conciliador de Köhler, um dos organizadores dos protestos, Viktor Piorecky, avaliou que tudo não passava de uma ?estratégia de publicidade?. Para tentar acalmar os ânimos dos manifestantes, que chegavam em ônibus que literalmente bloqueavam a fronteira com a Alemanha, uma reunião foi programada entre trezentos representantes das ONGs e o presidente checo Vaclav Havel, ele próprio um ativista durante a Primavera de Praga, em 1968. Melhor para os manifestantes, que desta não devem ser surpreendidos com tanques pelo caminho.