Com 36 mil servidores na ativa e 13,6 mil aposentados, Tocantins tem uma condição privilegiada no Brasil hoje. Fundado em 1988, o jovem estado tem quase três funcionários públicos em serviço para cada um que deixou a atividade. Na média das 27 unidades da federação, a relação é de 1,13: para cada servidor trabalhando há outro que recebe aposentadoria. A situação da previdência no Tocantins deveria ser, portanto, sutentável. Não é. As contas estão à beira do déficit e, se nada for feito, haverá problemas muito mais sérios no futuro. Uma série de falhas históricas contribuíram para o quadro atual. Nenhuma tão acintosa quanto as fraudes cometidas com o investimento do dinheiro dos servidores em fundos duvidosos, os chamados papéis podres. O prejuízo estimado é de cerca de R$ 1 bilhão, segundos estimativas do instituto.

Um esquema de direcionamento de recursos de previdências públicas para aplicações temerárias se espalhou por administrações de todo o País nos últimos anos. Os danos ainda não foram totalmente apurados. Em auditorias recentes, a Secretaria da Previdência, do Ministério da Economia, mapeou 321 institutos de previdência afetados – entre municipais e estaduais. Já foram reconhecidos como perdas R$ 2,4 bilhões e o potencial total das baixas é avaliado em R$ 10 bilhões. Alguns auditores e gestores ouvidos pela reportagem da DINHEIRO acreditam que o valor total pode ser duas vezes maior. E essa conta recairá sobre servidores e contribuintes.

A perda imediata se dá no universo dos 8,1 milhões de funcionários públicos que são atendidos pelos regimes próprios dos estados e municípios, mas a fatura vai ser dividida com toda a população. Parte da contribuição investida nesses fundos questionáveis vem do lado “patronal” e é feita por prefeitos e governadores. Para fazer aportes extras que sejam necessários para garantir a previdência dos inativos, o dinheiro sairá de serviços públicos essenciais.

Investimento suspeito: aplicações de institutos públicos de previdência num hotel no Rio de Janeiro que levaria a banderia de Donald Trump foram alvo de uma operação da Polícia Federal (Crédito:Divulgação)

O dano para a administração que colocou dinheiro nos fundos podres pode ser maior. Muitas instituições envolvidas nas fraudes não conseguem tirar o Certificado de Regularidade Previdenciária (CRP), o que trava a transferências de recursos federais, além de não obter garantias da União para empréstimos. Para contornar essa restrição, estados e municípios têm judicializado o problema.

Só em Tocantins, R$ 1,4 bilhão foram destinados aos fundos duvidosos entre 2011 e 2014. Na carteira de aplicações ainda constam R$ 639 milhões em investimentos “estressados” (ou seja, problemáticos). Como o trabalho de recuperação ainda está em curso e os fundos têm prazos de resgate longos, os balanços dos institutos de previdência afetados pelas fraudes retratam uma situação irreal, com os ativos podres sendo considerados no cálculo para o pagamento dos benefícios. “Há uma cultura de mascarar o déficit e empurrar o problema com a barriga”, afirma um gestor, que prefere não se identificar. “Com as dificuldades na arrecadação, vamos ter de equacionar as perdas entre os servidores.”

Déficit: à vista Mauro Carlesse, governador de Tocantins: em gestões anteriores, a previdência do estado aplicou R$ 1,4 bi em fundos duvidosos (Crédito:Divulgação)

Em Tocantins, o rombo com os fundos podres se somará às insuficiências geradas pelo início tardio das contribuições do governo — os aportes patronais só começaram em 2001. Além disso, há o problema dos benefícios extremamente altos. A média das aposentadorias no poder Executivo ronda os R$ 7 mil, mas chega a superar R$ 20 mil em outras categorias do funcionalismo. Na previdência municipal de Pouso Alegre, em Minas Gerais, os investimentos alocados em gestores independentes chegaram a 51% do patrimônio líquido e o novo prefeito teve de decretar uma intervenção. Atualmente, as aplicações problemáticas estão contabilizadas em R$ 155 milhões e a avaliação das perdas estimadas em R$ 100 milhões. Outros dois casos emblemáticos acontecem em Paulínia (SP) e Uberlândia (MG), onde as aplicações alcançaram, somadas, R$ 730 milhões. O rombo deve passar de R$ 300 milhões, segundo as estimativas feitas a partir de auditorias nos institutos.

ROMBO DE R$ 70 BILHÕES Cerca de 40% das administrações estaduais e municipais não fazem mais parte do sistema do INSS. Existem hoje no Brasil 2.123 regimes próprios de previdência, nos quais as regras são muitas vezes bem mais generosas do que no regime geral, com valores superiores ao teto do INSS, de
R$ 5.839,45. Uma parcela dos recursos é capitalizada em aplicações financeiras, para dar fôlego ao pagamento das aposentadorias. Os estados somavam um rombo de R$ 73 bilhões em 2017. Nos municípios, a conta ainda está no azul, mas quando se consideram as obrigações e receitas futuras no chamado cálculo atuarial, há previsão de déficit.

Alertas de problemas: documentos apresentados por gestores e auditores chamam atenção para a fragilidade de ativos em fundos que receberam recursos dos servidores

O peso das aposentadorias tem relação direta com a crise fiscal. Em 2017, pouco mais de 600 administrações não estavam em dia com os repasses aos regimes próprios, acumulando uma dívida total de R$ 7,7 bilhões. Outras 1.238 tinham débitos negociados em parcelamentos, num total de R$ 15 bilhões. Há municípios em que a prática da negociação parcelada vem sendo reiterada, com até dez contratos diferentes desse tipo.

A reforma da Previdência trará algum alívio aos cofres regionais ao estender a data das aposentadorias (idade mínima) e obrigar os estados e municípios a adotar o teto do INSS. No entanto, um dos pontos mais polêmicos da proposta do ministro Paulo Guedes é justamente adotar o modelo de capitalização. Mas o que aconteceu nos regimes próprios faz acender um sinal amarelo. No total, os institutos tinham R$ 148 bilhões aplicados em 2017. O INSS, porém, possui mais de três vezes o número de segurados. E foi justamente esse universo dos investimentos com recursos previdenciários de servidores que se tornou um ambiente fértil para as fraudes. Ele decorre, por um lado, da necessidade de alcançar bons retornos e, de outro, da dificuldade dos servidores em acompanhar de perto a gestão. Fundos de estatais como o Postalis (Correios), Petros (Petrobras) e Funcef (Caixa), enfrentaram o mesmo problema. Até hoje os funcionários pagam contribuições adicionais por fraudes e desfalques ocorridos nos investimentos.

O esquema funcionava assim: sentados sobre patrimônios milionários, diretores dos institutos públicos de previdência eram assediados por gestoras independentes. Em muitos municípios, a aproximação se dava com a anuência do prefeito. Aos poucos, os recursos iam sendo retirados de aplicações administradas por bancos tradicionais e de perfil conservador para fundos arriscados nas mãos de gestoras menores. Todos se beneficiavam. Investigações já identificaram que prefeitos e funcionários dos regimes próprios recebiam comissões. As empresas cobravam taxas de administração absurdamente altas. O custo chegava a superar em 35 vezes o de uma instituição de primeira linha. O relatório de intervenção em Pouso Alegre calculou um gasto adicional de R$ 12 milhões. “Uma maneira ‘lícita’ de expropriação do patrimônio do servidor público municipal”, como afirma o documento.

Corrida de gato e rato: nos últimos cinco anos, os institutos de previdências públicas regionais foram alvo de nove operações da Polícia Federal, três CPIs locais e duas intervenções (Crédito:Denny Cesare/Codigo19 / Agência O Globo)

Os fundos também tinham regras excepcionais à praxe de mercado. Prazos de resgate chegavam a 14 anos, quando não eram indefinidos. O cotista que precisasse do recurso daria a ordem de saque e teria de esperar todo o prazo previsto para a compensação na conta. Na maior parte dos casos, ainda sofria uma penalidade de até 50% do resgate. Eram maneiras de evitar uma corrida de saques quando os problemas fossem identificados. Agora há um impasse entre os administradores que buscam minimizar perdas. Não se sabe se é pior arcar com o pedágio ou correr o risco de que, na hora do resgate, nada mais esteja disponível.

As fraudes com os investimentos eram variadas. Há casos de debêntures emitidas por empresas de fachada, aplicações em companhias falimentares, papéis podres de negócios liquidados e precatórios vencidos, além de empreendimentos que não possuíam licenças básicas e que nunca saíam do papel ou consumiam cada vez mais recursos e não eram finalizados. Os gestores atuais comparam o esforço de recuperação a uma espécie de garimpo. “Tem de escavar para ver se encontra ouro”, afirma um representante.

Alto risco: em relatório de classificação, a agência de risco destaca que investimentos previstos por uma empresa de um dos fundos não foram realizados

Um dos casos mais simbólicos foi o das debêntures da ITS@. Como revelado por DINHEIRO, a empresa de tecnologia tinha como sócios os donos da corretora Gradual, que fazia a gestão de fundos com recursos previdenciários. Uma ordem de compra feita à revelia dos gestores gerou a suspeita que embasou a operação “Encilhamento” da Polícia Federal. A investigação comprovou que o investimento havia sido feito numa empresa de fachada. Outro caso apurado foi o da Bittenpar que, com um capital social de apenas R$ 500, emitiu R$ 750 milhões em títulos. A operação “Circus Máximus” mostrou como um hotel que chegou a negociar uma parceria com o então empresário Donald Trump serviu de plataforma para desviar os recursos dos regimes próprios. A “Abismo” denunciou um prefeito cearense, um pastor e a Bittenpar — que apesar de nunca ter operado, distribuiu dividendos aos sócios e comprou um automóvel de luxo da marca Mercedes-Benz, segundo a Polícia Federal.

Os esforços das autoridades lembram uma corrida de gato e rato. Nos últimos seis anos, foram ao menos nove operações da Polícia Federal, três Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), além de duas intervenções em institutos de previdência. Uma investigação feita por DINHEIRO a partir de documentos, entrevistas com auditores e autoridades, revelam que, mesmo se as fraudes tivessem parado por completo, ainda haveria uma série de danos contratados. De 40 fundos pesquisados, ao menos 20 trazem algum apontamento sério dos auditores — ou porque não havia documentos para concluir o parecer ou com ressalvas ao que foi apresentado. Boa parte desses fundos também já foram fechados para resgates.

Entre os casos ainda não esmiuçados pelas autoridades, é possível encontrar, por exemplo, a comunicação de perdas relacionadas à construtora Stiebler, num fundo com mais de 20 cotistas previdenciários. Os gestores confirmam tratar-se de um ativo “sem lastro”. Outros três fundos com recursos dos institutos investiram em debêntures da M.Invest. A empresa tem como sede o endereço do empresário Lourival Rodrigues, do M.Group, envolvido em negócios imobiliários suspeitos na região Sul. O depoimento de um ivestigado nas fraudes dos fundos de estatais sugeriu que a empresa pagava “rebates” às pessoas responsáveis para direcionar os recursos dos servidores. Nas análises de risco das debêntures também ficam evidentes uma série de problemas, como investimentos previstos e não realizados, além de falhas nas garantias.

Faltaram recursos: o projeto de revitalização de um prédio dos Diários Associados, no Rio de Janeiro, foi interrompido por insuficiência de caixa e causou uma baixa contábil no fundo investidor (Crédito:Carlos Ivan / Agência O Globo)

Entre os ativos imobiliários, um caso chama atenção. Ao justificar baixas com a debênture CBU Juazeiro, a gestora de um dos fundos levanta suspeita de desvios nas vendas de lotes de um empreendimento. Um dos responsáveis pela CBU, Juvencio Coelho Lustosa Filho, tem participação na Riviere Casa Nova, que tinha como sócio Renato Di Matteo, preso na Itália por acusações apresentadas na “Encilhamento”. A Riviere também recebeu aportes dos fundos com recursos previdenciários. Num deles, os auditores chamam atenção para o fato de a companhia, fundada em 2015, ainda estar em estágio pré-operacional no final de 2018. Procurados, Lustosa, Rodrigues, a Stiebler e a defesa de Di Matteo não foram encontrados. Entre as baixas imobiliárias já contabilizadas, há ainda o caso de um projeto de revitalização do prédio dos Diários Associados na região portuária do Rio de Janeiro, cuja obra nunca foi concluída. Os institutos também temem perdas com aplicações dos fundos na churrascaria Porcão, que teve a falência decretada em 2017.

REGULAÇÃO Colocar um freio nas investidas suspeitas é uma tarefa complexa diante do universo de recursos e dos fundos disponíveis no mercado. Atualizações nas normas da Secretaria da Previdência, do Ministério da Economia, tentam fechar o cerco. Instruções passaram a limitar o percentual de ativos nos fundos de acordo com as classificações, como um máximo para os de renda fixa com crédito privado, por exemplo. Mais recentemente também obrigaram que os administradores sejam instituições autorizadas pelo Banco Central, com comitês de risco e auditoria. Com base nesses critérios, a Secretaria passou a divulgar uma lista dos fundos de investimento que não se enquadram nos critérios estabelecidos e que receberam recursos dos institutos públicos. Cerca de 140 fundos foram classificados como vedados.

Também há um esforço para melhorar a sustentabilidade. Uma norma do fim do ano passado tornará obrigatória a retirada dos investimentos desenquadrados do cálculo futuro de disponibilidades para o pagamento das aposentadorias (cálculo atuarial). Isso forçará os gestores que não reconheceram a baixa dos investimentos problemáticos nas carteiras a agirem. “Sabendo que tem papéis de empresas envolvidas em operações policiais, os regimes próprios já deveriam fazer o reconhecimento contábil”, afirma Allex Albert Rodrigues, subsecretário de Regimes Próprios de Previdência Social. “Se tem ativo desenquadrado, não poderia identificar como garantidor do plano no resultado atuarial. É uma questão de conservadorismo contábil.” Por todos os problemas pelos quais passam os institutos públicos de previdência, um pouco de conservadorismo viria mesmo a calhar.