“Ninguém achou que ia ser tão rápido”. O ex-primeiro-ministro reformista húngaro Miklós Németh revela os bastidores do desmantelamento da Cortina de Ferro, que começou em 1989, precipitando a queda do Muro de Berlim e o fim do bloco comunista.

Esta decisão foi tomada em estreita colaboração com o então líder soviético, Mikhail Gorbachev, e o então chanceler alemão, Helmut Kohl, cujos olhos se encheram de “lágrimas” quando comentou sua ideia de deixar sair livremente os alemães orientais, como relata Németh, de 71 anos, em uma entrevista exclusiva para a AFP em sua casa, perto do lago Balaton, onde hoje em dia cultiva frutas.

P: O que o levou a desmantelar a Cortina de Ferro a partir da primavera (hemisfério norte) de 1989?

R: A cerca de arame farpado, de fabricação soviética, era velha e obsoleta. Os chefes do corpo de guardas de fronteira nos pediram para decidir sobre seu destino, dando-nos três opções: modernizar, reconstruir completamente com tecnologia importada em parte do Ocidente, ou desmantelar, repensando de maneira total a vigilância da fronteira, a solução que fosse de sua preferência. Uma demolição-reconstrução teria custado uma fortuna, e não tínhamos dinheiro para isso.

Era também uma questão de princípio. Essa cerca era um anacronismo. Budapeste e Viena apresentavam uma candidatura conjunta para a Exposição Universal de 1992. Que mensagem teríamos enviado para o mundo? Também nos interessava, aos países reformadores – Hungria e Polônia -, enfraquecer os regimes comunistas ortodoxos. Havia, então, também uma ótima razão ideológica.

P: O que foi que aconteceu, então?

R: A partir do final de janeiro, início de fevereiro, informei ao (então) chanceler austríaco, Franz Vranitzky, que a cerca seria destruída. Em março, fui ver Gorbachev para falar de vários assuntos importantes, entre eles a presença de 100.000 soldados soviéticos na Hungria e de mísseis apontando contra a França e a Itália. E, entre outras coisas, eu mencionei que íamos derrubar a cerca e não haveria mais um cercado na fronteira austro-húngara.

P: Como Gorbachev reagiu?

R: Ele me disse: ‘isso não representa problemas desde que a fronteira esteja protegida. É responsabilidade de vocês’. Essa foi frase-chave. Perguntei também: ‘como você reagiria, Mikhail, se as eleições levassem ao poder um governo que não lhes será favorável? Porque, depois de 40 anos de partido único, vamos ser ejetados. O que vai fazer com os 100.000 soldados e os mísseis nucleares?’ Mikhail bateu com a mão na cadeira e disse: ‘enquanto eu estiver nessa cadeira, (a repressão do Exército Vermelho ao Levante de Budapeste em) 1956 não voltará a ocorrer’. Claramente era o fim da doutrina Brezhnev.

Ele simplesmente me pediu para não dizer uma palavra, nem mesmo ao Comitê Político. No entanto, eu disse a ele que precisava de um gesto dele, uma importante retirada de tropas. Ele fez isso em 25 de abril, chamando de volta 10.000 soldados. Ele me pediu para confiar nele, e confiança chama confiança.

P: Você não teve medo de uma guinada de 180 graus?

R: Observei aquele homem o ano 1989 todo. Eu me questionava se ele ia ser, ou não, substituído por alguém de linha dura. No avião de volta para casa, um dos meus colaboradores me fez ver que se eu tivesse feito as mesmas perguntas uns cinco, ou dez anos antes, nosso voo provavelmente teria como destino a Sibéria. Respondi a ele que, de fato, era uma nova época e que tinha que aproveitar essa situação.

P: Como agiu depois?

R: No início de abril, os guardas de fronteira começaram a desmantelar a Cortina de Ferro do lado de Rajka. Escolhemos Rajka, porque os austríacos, e também os tchecoslovacos, que eram linha dura, podiam nos ver. E porque era ali que havia mais tropas soviéticas e agentes da KGB.

P: Foi um teste?

R: Sim. A partir de meados de abril, eles tinham sido desmantelados entre 3 e 4 quilômetros. E Gorbachev manteve sua palavra: o telefone vermelho não tocou, o embaixador soviético não o interrompeu. Então continuamos.

P: O desmantelamento não começou em 2 de maio, a data em que foi anunciado?

R: Nessa data, dois terços da cerca haviam sido destruídos. Em 2 de maio, a decisão se tornou pública. Até na Alemanha Ocidental. E não houve reação de Moscou.

P: Como reagiram os outros países comunistas?

R: (O líder da Alemanha Oriental, Erich) Honecker viu imediatamente que algo estava acontecendo, e seu ministro das Relações Exteriores, assim como o vice-ministro, multiplicou viagens a Moscou para exigir uma intervenção dos camaradas soviéticos. Mas eu sabia que Gorbachev não interviria, e também recebi protestos do búlgaro Jivkov, do tchecoslovaco Jutsch e do romeno Ceausescu.

Durante uma reunião do Pacto de Varsóvia, no final de julho, eles solicitaram uma sessão extraordinária sem os húngaros, ou os poloneses, para discutir nossos casos, para ver como “nos ajudar”, porque o proletariado internacional e o marxismo-leninismo estavam em ruínas em nossos países.

Eu estava sentado de frente para Gorbachev e nunca vou esquecer como meu olho piscava, algo que as câmeras também capturaram. Em seu discurso, ele não fez menção aos protestos, como se eles não tivessem existido.

P: E depois?

R: As coisas se aceleraram. Quando (o ministro austríaco das Relações Exteriores Alois) Mock sugeriu uma cerimônia simbólica de corte da cerca com (seu colega húngaro) Gyula Horn na fronteira, no final de junho, eu disse a ele que era uma boa ideia. Mas havia um pequeno problema: já não existia cerca! Tivemos que reconstruir a Cortina de Ferro! Não a verdadeira, claro, apenas uns 200, 300 metros de cercado metálico.

P: E foi nesse momento que os alemães orientais começaram a sair em massa?

R: No início de agosto, foram 10.000, 20.000. Depois 40.000-45.000. E ainda mais. Eles acamparam em todos os lugares. Todos decidiram não voltar (para a Alemanha Oriental). E eles sabiam que não os expulsaríamos.

P: Como lidou com esse fluxo?

R: Não conseguimos atender às necessidades de 60 a 70 mil alemães orientais. Nossa economia era muito ruim. Eu sabia que uma decisão crucial tinha de ser tomada. Liguei para Kohl no início de agosto. Finalmente nos reunimos em 25 de agosto no Castelo de Gymnich, perto de Bonn. A decisão estava quase que tomada do nosso lado. Eu disse a ele que, se ele estivesse disposto a receber tantas pessoas, abriríamos as fronteiras.

P: E como Kohl reagiu?

R: Quando eu disse isso ao chanceler, os olhos daquele grande homem se encheram de lágrimas. Ele praticamente começou a chorar, depois se recompôs. Ele me perguntou se Gorbachev aprovava essa decisão. Eu mencionei três, ou quatro, exemplos que mostraram que eu não precisava pedir permissão a Gorbachev. Foi o fim do mundo como conhecíamos, com a doutrina de Brezhnev. (O presidente americano) George Bush pai, (a britânica Margaret) Thatcher, o presidente francês (François Mitterrand), os japoneses, todos queriam saber o que estava acontecendo e o que Gorbachev pensava.

P: Existia uma certa preocupação?

R: Todos ficaram apavorados, e confesso que também temia uma possível guinada de 180 graus por parte de Moscou. Mas eu disse a Kohl: ‘Mesmo que ainda haja muitas tropas soviéticas em nosso país, acredite em nossa análise, elas não intervirão’. Ficou claro que estávamos nos aproximando de um momento histórico e que o mundo estava prestes a dar uma virada dramática. Embora tivéssemos concordado em manter o segredo, Kohl ligou para Gorbachev no dia seguinte. Gorbachev disse a ele que os húngaros eram pessoas boas e que ele poderia confiar no primeiro-ministro Miklós Németh. A partir desse momento, os preparativos poderiam começar, também com os austríacos. Havia a questão da infiltração de centenas de agentes da Stasi que provavelmente fariam isso quando abríssemos a fronteira.

P: E o piquenique pan-europeu de 19 de agosto, que celebra seus 30 anos na segunda?

R: É a data de celebração privilegiada pela direita, que afirma que este evento ‘forçou o governo a abrir a fronteira’. Mas a decisão foi tomada no início de agosto. De qualquer forma, alemães e austríacos tiveram tempo de se organizar para administrar um número tão grande de pessoas. A verdadeira data de abertura da fronteira, de 10 a 11 de setembro, nunca foi celebrada na Hungria.

P: Estava consciente do impacto desta decisão?

R: Qualquer um que diga que tinha ideia é um mentiroso. Não acredito que alguém previu que o Muro de Berlim cairia dois, ou três meses depois. É impossível. Ninguém pensou que seria tão rápido. Um ano depois, a Alemanha estava unificada. Para isso, era necessário alinhar os planetas. Foram necessários Bush pai, Gorbachev e a capacidade de Kohl de manobrar as duas grandes potências.

P: E a Hungria?

R: Nós, húngaros, tínhamos o papel que o destino nos dera. A decisão de abrir a fronteira não é o ato de uma única pessoa. Foram a nação e o povo húngaros que fizeram isso.

P: E se tivessem de fazer isso de novo?

R: Eu faria a mesma coisa. Estou orgulhoso de que o destino me permitiu estar naquele lugar naquele momento.

P: Ainda mantém contato com Gorbachev? A: Sim, claro. Mantivemos contato, e esse contato ainda é forte hoje.

P: Qual foi seu sentimento quando o atual primeiro-ministro conservador nacional, Viktor Orban, reconstruiu uma cerca de arame na Hungria para deter migrantes em 2015?

R: Eu não acredito nos muros. Claro, eles podem ser práticos em curto prazo. Mas, com exceção da Muralha da China, todos os outros muros, incluindo o que o presidente Donald Trump está construindo, serão esquecidos pela História. Porque, no mundo de hoje, os problemas não podem ser resolvidos com muros.