O brasileiro que comanda a entidade máxima do comércio global tem agora o desafio de buscar soluçõs capazes de evitar que o choque sofridos com a pandemida de Covid-19 provoque uma recessão duradoura.

Ninguém esperava que 2020 seria um ano fácil para o comércio mundial e para as organizações multilaterais responsáveis por garantir que as suas regras sejam respeitadas e estimular a abertura de economias. Com uma disputa comercial entre EUA e China, os riscos de protecionismos já afetavam as projeções de crescimento globais. Nesse enfrentamento, até mesmo o mecanismo de resolução de disputas da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi afetado pela falta de indicação de integrantes. Mas o pior ainda estaria por vir — e surgiu na forma de uma pandemia. Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC, falou a DINHEIRO sobre os impactos dessa tempestade perfeita sobre o comércio global.

DINHEIRO — O mundo pode ficar um tanto diferente depois de passado o Covid-19?
Roberto Azevêdo — Dependerá muito da duração da crise. Se ela for de curto prazo, de alguns meses, as empresas se abastecerão com seus estoques e encontrarão alternativas provisórias de logística. Se os efeitos continuarem, as empresas serão obrigadas a buscar outros fornecedores ou, até mesmo, mudar a estrutura e a logística do seu parque produtivo. No setor de serviços, sobretudo, as novas tecnologias podem alterar bastante as operações em alguns setores — com menos contato humano, por exemplo. Quanto mais essa situação se prolongar, maior a probabilidade de vermos mudanças estruturais.

Isso não é preocupante?
As cadeias produtivas existentes foram montadas para minimizar os custos de produção. Sua desestruturação pode levar a um aumento dos preços para o consumidor e reduzir as eficiências na cadeia. Isso, em princípio, não é bom. Mas também podemos ver o desenvolvimento de métodos produtivos mais eficientes e criativos. O tempo dirá. Os governos devem estar preparados para todas possibilidades e procurar as alternativas mais saudáveis para suas economias e sociedades.

O surto do vírus pode pelo menos criar uma trégua nessa disputa entre China e EUA?
Difícil dizer… O certo é que aumentam as incertezas no mercado internacional. As tensões comerciais já haviam arrefecido um pouco antes da crise do coronavírus, mas permanecem. E seguem impactando diretamente no desempenho do comércio mundial. Nesses cenários, precisamos é de cooperação e diálogo. Soluções negociadas são o melhor caminho.

Se o acordo entre China e EUA valer, quanto tempo leva para passar a desaceleração dos fluxos comerciais atuais? Existe expectativa de retomada para 2021?
Nossas próximas projeções para o crescimento do comércio global devem sair em meados de abril. Na última análise que fizemos, em setembro, a incerteza na política comercial figurava como força motriz por trás da desaceleração comercial. Um arrefecimento das tensões, em cenário de controle total da epidemia, poderia refletir positivamente nas perspectivas para 2021. Mas não quero com isso criar expectativas. É improvável vermos uma retomada acelerada e robusta no curto prazo, mesmo com o debelamento da crise pandêmica.

Na crise do coronavírus, o Brasil, de certa forma, pode ser beneficiado por ter uma economia mais fechada?
As economias mais fechadas podem até contar alguma vantagem, no curto prazo, mas não é algo sustentável ou desejável. Primeiro, porque a abertura comercial é imprescindível para elevar a competitividade do produto nacional, para o acesso a novas tecnologias e aos grandes mercados consumidores. Segundo, pois, mais cedo ou mais tarde, os efeitos da crise chegarão. Seja na queda das exportações ou redução dos investimentos, que baixam drasticamente em momento de instabilidade.
Os menos competitivos sentem mais.

“É improvável vermos uma retomada acelerada e robusta no curto prazo, mesmo com o debelamento da crise pandêmica” (Crédito:Fei Maohua/Xinhua)

Como a OMC pode se proteger de novos impasses como o do tribunal de apelações?
O impasse no Órgão de Apelação reflete uma questão mais ampla — e de longa data — sobre como aprimorar o sistema de solução de controvérsias da OMC. Uma coisa está clara: todos os membros coincidem em que precisamos de um sistema em duas instâncias, independente e imparcial. É natural que, com 164 membros, haja diferentes visões do caminho a seguir. Há várias propostas na mesa. Algumas estão bem avançadas, como a de um acordo temporário multipartes – do qual o Brasil faz parte. Essa é uma prioridade para mim e para a grande maioria dos membros.

O mundo pode entrar num período em que ações unilaterais ganhem força?
Por mais paradoxal que possa parecer, as medidas unilaterais têm evidenciado o valor de contar com organismos que promovam um ambiente previsível, estável e seguro para os negócios. É impressionante o nível de apoio que temos recebido do setor privado e de lideranças políticas de peso. Isso não significa que não podemos melhorar. O mundo está se transformando em velocidade recorde. Qualquer sistema que fique parado no tempo, perderá relevância ou será suplantado por outros mecanismos. É preciso modernizar e fortalecer a OMC. E estamos trabalhando intensamente para isso.

Como garantir que países que sofrem medidas unilaterais não as apliquem?
Os resultados falam por si. No curto prazo, algumas ações unilaterais podem até trazer benefício imediato, mas, no balanço final, o saldo é negativo. A escalada de tensões e de medidas unilaterais prejudicaram o ambiente de negócio e os investimentos globais. O comércio vem crescendo bem abaixo das taxas históricas. Os eventuais ganhos mais imediatos terminam obliterados pelas inevitáveis perdas de médio prazo, até mesmo pela desaceleração da economia mundial. Os foros multilaterais são fundamentais nesses casos, ajudando a costurar soluções de compromisso, onde todos levam algo para casa.

A Europa ameaça impor sobretaxas caso o país perdedor recorra ao órgão de apelações que está parado. Existe esse risco?
Claro que esse é um risco. Eles certamente estão preocupados com o futuro do Órgão de Apelação, e a incerteza que isso traz para as disputas comerciais. Mas não vejo sinais de desengajamento. Pelo contrário. Inclusive, enquanto o debate sobre uma solução definitiva ocorre, um grupo de membros — que inclui a União Europeia — está comprometido com um sistema provisório de arbitragem para essa segunda instância. Eles seguem convencidos de que um estágio de apelação, independente e imparcial, é essencial.

As posturas ambientais do Brasil podem ser prejudiciais aos planos do País de ampliar sua abertura comercial?
A questão da sustentabilidade ambiental está, sem dúvida, cada vez mais presente na agenda global. O tema pautou, por exemplo, os debates no Fórum Econômico em Davos, este ano. Comercialmente, vemos aumentar a demanda por produtos ambientalmente sustentáveis. Medidas comerciais adotadas para a proteção ambiental também são hoje bem mais frequentes. Algumas, inclusive, impactam na proteção de recursos ambientais fora da jurisdição do membro que adotou a medida. O Brasil tem participado e acompanhado de perto esse debate.

Cláusulas de segurança ou ambientais, como as taxas de carbono, podem se tornar mais e mais ferramentas de protecionismo?
Os membros da OMC são livres para adotar as medidas necessárias para a defesa do meio ambiente. O leque de opções é muito grande. A limitação imposta pelas regras da OMC é que essas medidas não podem ser aplicadas de maneira arbitrária ou discriminatória. Ou seja, o argumento legítimo de proteção ambiental não pode servir como pretexto para introduzir medidas com fins protecionistas.

Os impactos do Brexit ainda são incógnita ou agora estão mais clara as diretrizes?
Ainda há um bom caminho a percorrer. Na OMC, o Reino Unido informou aos membros que pouca coisa mudará até o término do período de transição. Indicaram que suas relações comerciais com a União Europeia e demais membros se manterão estáveis até dezembro deste ano. O Reino Unido permanece na união aduaneira e no mercado único europeu durante todo o período. Devemos agora observar que tipo de acordo comercial resultará das negociações dos ingleses com a UE. Interessa a todos que essas tratativas sejam bem-sucedidas, mantendo a estabilidade e previsibilidade nos mercados. O que se pode prever é que veremos dias de intensas negociações comerciais, tanto entre o Reino Unido e a UE, quanto entre o Reino Unido e seus parceiros comerciais.

“As tensões comerciais entre China e EUA tinham arrefecido com o acordo comercial. Agora é difícil saber o que vai acontecer” (Crédito:Evan Vucci)

Existe risco de perda de empregos e desindustrialização no Brasil caso ele avance muito rapidamente no plano de abertura, enquanto o resto do mundo adota mais protecionismo?
Estou convencido de que a abertura comercial é essencial para o crescimento no Brasil. A história ensina que não há desenvolvimento econômico sustentado sem maior exposição ao comércio internacional, nos dois sentidos – importações e exportações. Para que a indústria brasileira seja competitiva no médio e longo prazo, precisa estar exposta às tendências, às tecnologias e à concorrência externa. Todos sairão ganhando, empresários, trabalhadores, consumidores.

A entrada do Brasil na OCDE mudaria de alguma forma o seu status na OMC?
Na OMC, o status dos membros é baseado na autodeclaração. Não há critérios prévios para essa determinação. Há discussão sobre possíveis critérios para definir quais países em desenvolvimento poderiam se beneficiar das flexibilidades e exceções previstas nos acordos da OMC. Esse é um debate sensível. Desde abril de 2019, o Brasil abriu mão dessas flexibilidades em futuros acordos na Organização. O País mantém, no entanto, status de em desenvolvimento na OMC.

Taxações de empresas de internet podem se tornar um tema levado à OMC?
A OMC não regula direta ou especificamente essa questão. Mas há uma vertente desse tema sendo discutida, relacionada à economia digital. Um grupo de membros da OMC está negociando um entendimento que possa contribuir para a previsibilidade, a interoperabilidade e a confiança no comércio eletrônico. São 83 membros, que somam mais de 90% do comércio global e incluem atores de peso como os EUA, a UE, a China e o Brasil. Os debates estão avançados. A meta é ter resultados concretos na próxima Conferência Ministerial.

A forte queda do petróleo, com a briga entre Arábia Saudita e Rússia muda de que forma a perspectiva para o comércio internacional?
Desde a perspectiva comercial, o que mais preocupa é a abertura de uma nova frente de tensões. Isso não contribui para melhorar o quadro global de instabilidade que já custou a desaceleração do comércio internacional nos últimos dois anos.