Ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina Neto defende que cobertura vacinal no país só vai aumentar novamente se o governo voltar a modelo de campanhas de vacinação, defendendo eficácia de imunizantes junto à população.A notícia de uma criança de 3 anos suspeita de estar infectada com o vírus da poliomielite no Pará, revelado no início do mês, acendeu um alerta para o retorno da doença cujo último caso foi registrado em 1989, e também para a queda na cobertura vacinal infantil nos últimos anos.

O caso está sendo investigado pela Secretaria Estadual de Saúde, mas tudo indica que a infecção tenha ocorrido após um erro no esquema vacinal do menino. O PNI (Programa Nacional de Imunização) afirma que a vacina contra a pólio deve ser ministrada em duas etapas: a primeira com injeção intramuscular (vírus morto) e a segunda com a gotinha (vírus atenuado). Ele só havia recebido doses via oral.

O descompasso no esquema vacinal do menino paraense é uma realidade no Brasil. A última vez que o país alcançou 100% da cobertura vacinal para a doença foi em 2013. A queda abaixo dos 90% acontece desde 2016 e, no ano passado, o patamar chegou a 69,9%, segundo o Ministério da Saúde. O problema é similar para outras vacinas, como BCG, que previne contra tuberculose, e Tríplice Viral, que impede a disseminação do sarampo, rubéola e caxumba.

Mundialmente, o problema também preocupa a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). As duas entidades publicaram um levantamento em julho deste ano mostrando que, no ano passado, a cobertura para a primeira dose do sarampo caiu para 81%, o pior índice desde 2008.

“A situação é especialmente preocupante para a América Latina e o Caribe, onde a cobertura historicamente alta caiu na última década. No Brasil, na Bolívia, no Haiti e na Venezuela, a cobertura vacinal caiu em pelo menos 14 pontos percentuais desde 2010”, diz um trecho do relatório.

Em entrevista à DW Brasil, o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a diminuição no número de campanhas de vacinação, a falta de informação sobre a eficácia das vacinas e as trocas constantes do Ministério da Saúde são alguns dos fatores que explicam a queda na cobertura vacinal.

“O SUS (Sistema Único de Saúde) já realizou campanhas de vacinação em que vacinamos 13 milhões de crianças contra poliomielite em um único dia. É um modelo que funciona, mas que precisa de marketing”, avalia.

DW Brasil: A que se deve, na sua opinião, a queda na cobertura vacinal registrada no Brasil?

Gonzalo Vecina Neto: O Brasil tem o Programa Nacional de Imunizações instituído desde 1975, ainda em plena ditadura militar, e o projeto de vacinação brasileiro tem uma definição: é um projeto campanhista. Esse projeto foi se aprimorando em meados dos anos 1990, com a criação do SUS (Sistema Único de Saúde) e das Unidades Básicas, que fazem o acompanhamento da população no que diz respeito às vacinas, especialmente das crianças.

Esse modelo campanhista tem uma lógica: você prepara uma estrutura de vacinação em um dia específico e concentra esforços. O SUS já realizou campanhas de vacinação em que vacinamos 13 milhões de crianças contra poliomielite em um único dia. É um modelo que funciona, mas que precisa de marketing. O governo precisa voltar a fazer marketing da eficácia da vacina junto à população.

A partir de 2016, nós entramos em uma crise econômica, e essa crise derrubou o financiamento do Ministério da Saúde. E uma das coisas que os gestores fizeram foi cortar as campanhas de vacinação. O pensamento é o seguinte: quem quiser tomar vacina, vai. Quem não quiser, não vai.

O imunizante está à disposição, não há o incentivo. Sem campanha, as pessoas não tomam vacina. Isso não é algo exclusivo das crianças. A cobertura vacinal da gripe para os adultos está abaixo dos 50% da população-alvo, quando a média era de 60% a 70% em anos anteriores. É a mesma coisa para a rubéola nas grávidas, que também está em queda. Sem a campanha, sem o incentivo, a cobertura vai continuar caindo.

A desinformação também é um problema?

Esse é um segundo fator, também fundamental. Essa foi uma discussão que se acentuou na pandemia. “Ah, porque as vacinas foram criadas muito rápidas (sic)”, “Ah, porque as vacinas feitas a partir do código genético transformam pessoas em jacaré”…

Resgataram um artigo de um médico norte-americano publicado na revista Lancet que dizia que a vacina contra o sarampo poderia causar autismo, baseado na utilização de um conservante, o Timerosal, algo que foi desmentido na própria revista por outros pesquisadores. Mas essa “tese” circulou por 3 ou 4 anos na internet. Então, nós vivemos a era das fake news, e isso tem um grande impacto na saúde pública.

O que leva a um terceiro fator: 2 a 3% da população mundial não se vacinam. É uma religião. Gente que acredita que uma criança precisa desenvolver algumas doenças como sarampo e caxumba para ter um sistema imunológico forte. Em crianças bem alimentadas, fortes e com boa saúde, essas doenças não geram maiores transtornos. Mas, se a criança estiver desnutrida, fraca e sofrer com outras comorbidades, o quadro pode ser muito perigoso, inclusive de morte.

Existem doenças que estavam erradicadas e podem voltar a circular no Brasil?

Nós temos três grandes temores no país atualmente: sarampo, poliomielite e a rubéola. O último caso de poliomielite registrado no Brasil é de 1989 e fomos considerados livres da doença em 1994 pela Organização Pan-Americana de Saúde.

Agora, foi registrado um caso de paralisia flácida no Pará, que está sendo investigado, mas que parece ter relação com uma reação ao esquema vacinal da criança, o que pode acontecer se feito da maneira incorreta. Houve também um caso semelhante recentemente em Nova York.

Nós temos que seguir acompanhando e mostrar que o possível retorno dessas doenças é algo muito ruim para o Brasil. E isso é algo que afeta os adultos também. O sarampo em uma criança é relativamente tranquilo, mas pode ser um desastre na fase adulta. O mesmo acontece com a rubéola, que é benigna em crianças, mas pode afetar severamente o desenvolvimento fetal de uma mulher grávida.

Qual o impacto da desigualdade social nessa discussão sobre o retorno de algumas doenças?

Não há outra saída: em países como o Brasil, sociedade desigual significa sempre mais doenças. E aí questões de raça e cor entram com mais força, porque são a parcela da população mais alijada de políticas públicas que envolvem saúde, saneamento básico e habitação.

Foi algo que nós vimos durante a pandemia. O critério para vacinar primeiro foi a idade, mas deveria ter sido de vulnerabilidade, porque os mais velhos podem ficar em casa. Mas quem não podia ficar em casa — e a maioria dessas pessoas saía porque precisava botar comida na mesa — era de negros e pobres.

A baixa cobertura vacinal é um problema apenas no Brasil?

Não, é um fenômeno global. O movimento antivacina é muito forte na Europa e nos EUA. E o que nós temos visto é a chance de uma contaminação em massa dessas doenças ser alavancada pela alta circulação de pessoas e pela baixa cobertura que tem se acentuado. Se você pensa em um vírus como o ebola, por exemplo, que se manifesta em 48h, isso é mais difícil de acontecer, e por isso ele não consegue sair do continente africano.

Mas um vírus como o da poliomielite, cujo período de incubação é de 7 a 15 dias, pode ser disseminado em larga escala. Hoje, países como Afeganistão e Paquistão já sofrem com a circulação do vírus. Se não houver proteção vacinal em outros países, o problema pode se alastrar.

O Brasil teve quatro ministros da saúde no governo Bolsonaro. Essa rotatividade tem algum efeito nas medidas de saúde?

Veja, o primeiro ministro da Saúde foi o (Luiz Henrique) Mandetta, que tinha sua equipe de trabalho. Depois, entrou o Nelson Teich, que manteve boa parte da estrutura.

Ele ficou pouco tempo e foi substituído pelo General Pazuello, que destruiu o ministério. Colocou militares que não entendiam absolutamente nada de saúde e estavam em todos os níveis de gestão.

Falo isso com propriedade, porque participei de reuniões dentro da pasta no ano passado para discutir ações da pandemia. Fiquei impressionado, porque frequento o Ministério desde os anos 1980 e nunca vi nada parecido. Um desastre completo.

Em seguida, o Pazuello saiu e entrou o Queiroga, que manteve alguns militares, mas fez mudanças. Ou seja: como uma política pública pode ser eficiente em meio a tantas mudanças? Não será, sobretudo quando há uma falta de coerência nas trocas.

Há como blindar o PNI das disputas ideológicas e políticas?

O programa foi criado dentro da estrutura do Ministério da Saúde. O ministério compra a vacina, que repassa aos estados e os estados repassam aos municípios. Essa estrutura está montada.

Agora, a pandemia mostrou as brechas desse sistema, quando um governo faz de tudo para não comprar vacinas, como fez Jair Bolsonaro. O impacto foi imenso. Enquanto ele não mudou de atitude, estados e municípios tiveram problemas.