Desde 2001, ano do racionamento de energia elétrica, os brasileiros convivem com uma espada de Dâmocles pendendo sobre suas cabeças. O País encontra-se no limite de sua capacidade energética. A qualquer momento, um novo apagão poderá lançá-lo na escuridão. Os efeitos são conhecidos: transtornos no dia-a-dia dos cidadãos e uma forte desaceleração da atividade econômica. De acordo com cálculos do próprio governo, se o PIB crescer 5% ao ano, o País precisará acrescentar 2,5 mil megawatts à sua capacidade energética. Pois bem, diante desse cenário preocupante, uma pergunta insiste em não se calar: por que, afinal, um projeto como o do rio Madeira não sai do papel?

Trata-se do maior empreendimento do setor energético desde a construção de Itaipu, que, durante décadas, ostentou o título de maior usina hidrelétrica do mundo. Lá, no rio Madeira, que serpenteia a região amazônica, duas usinas, a de Santo Antônio e Jirau, produziriam 6,5 mil MW, o equivalente à metade do total gerado por Itaipu. O impacto ambiental, porém, seria tremendamente menor. A área alagada para viabilizar o funcionamento seria seis vezes inferior à de Itaipu.

Na verdade, o processo de aprovação para a construção das usinas lembra uma corrida de obstáculos. A cada barreira superada, uma nova surge à frente do atleta. As duas primeiras, a do impacto ambiental na região e a da participação das subsidiárias da Eletrobrás no projeto, já ficaram para trás. A mais recente delas, porém, está em seu ponto máximo de ebulição e envolve um embate entre dois colossos da construção pesada no País: a Odebrecht e a Camargo Corrêa. Esta se queixa do contrato de exclusividade que a Odebrecht mantém com alguns dos maiores fornecedores de equipamentos do mundo, como Alstom, Va-Tech e Voith- Siemens, responsáveis pela entrega das 44 turbinas necessárias para a operação de Santo Antônio. A Odebrecht rebate. Os acordos foram firmados dentro das regras de mercado. Há outros fornecedores como a Hitachi. O que estaria por trás dos questionamentos, afirma a Odebrecht, seria o desejo da concorrente de ter acesso a estudos realizados nos últimos anos por ela. Assim, a Camargo Corrêa pegaria um atalho no desenvolvimento do projeto.

As duas empreiteiras lideram dois dos quatro consórcios que participarão da licitação prevista para o final de novembro. O edital sairá nesta semana. O vencedor da disputa assumirá uma obrigação e conquistará um direito. No prazo de cinco anos, terá que erguer a primeira das usinas, a de Santo Antônio, um investimento de R$ 12 a R$ 13 bilhões. Em contrapartida, poderá explorar os serviços dessa unidade nos próximos 35 anos. A Odebrecht saiu na frente na definição do projeto ? bem na frente seria a expressão correta. Em 2001, a empresa baiana iniciou, por sua conta e risco, a análise do potencial hidrelétrico da região.

Desde então, desembolsou R$ 150 milhões em estudos ambientais e projetos de engenharia. ?Ninguém, além de nós, acreditou na viabilidade das usinas do Madeira?, afirma Irineu Meireles, executivo da Odebrecht responsável pela operação. Ao longo desse período, a empreiteira reuniu os fornecedores e firmou com eles contratos de exclusividade e com cláusulas de garantia de sigilo. Ninguém se queixou até julho de 2007, quando a Licença Ambiental Prévia foi emitida pelo Ibama. O documento se constituiu no sinal verde para o início das obras.

?Em 2005, entregamos o Relatório de Impacto do Meio Ambiente e, desde então, as informações sobre o projeto tornaram-se públicas?, afirma Meireles. ?Os demais interessados poderiam começar a montar suas propostas a partir dali.? Não o fizeram, segundo a Odebrecht. E agora correm contra o tempo. Daí a importância dos fornecedores. ?Eles têm conhecimentos sobre o projeto que reduziriam os investimentos e o tempo necessários para o desenvolvimento dos trabalhos?, afirma Meireles.

A discussão extrapolou as fronteiras brasileiras. A Odebrecht entrou nos tribunais americanos contra a General Electric. O objetivo da ação: impedir que a gigante americana participe do consórcio liderado pela Camargo Corrêa. Mas como a GE entrou nessa história?

Anos atrás, a empresa participou do grupo de fornecedores montado pela Odebrecht na fase de estudos do rio Madeira. Em certo momento, desistiu do projeto. Antes, porém, enviou uma carta para a empreiteira brasileira. Nela, se comprometeu a manter o sigilo das informações adquiridas durante esse processo. ?Só queremos que a GE cumpra o compromisso que assumiu voluntariamente?, diz Meireles. A Camargo Corrêa afirma que a Hitachi, uma de suas eventuais parceiras na proposta, só poderia atender a encomenda das turbinas se a GE participasse do trabalho. ?A participação da Hitachi está condicionada à da GE?, diz João Canelas de Mello, diretor da Camargo Corrêa encarregado do negócio. Para ele, a concorrente quer impedir a GE de aliar-se a outro consórcio para reduzir a competição no leilão.

?Tudo isso é uma jogada para afastar os concorrentes e ficar sozinha no mercado?, reclama. Meireles rebate esse tipo de argumento. ?Na fase de elaboração de nosso projeto, fizemos uma cotação junto à Hitachi e ela apresentou um orçamento?, conta ele. ?Em momento algum afirmou que precisaria de outras companhias para entregar as turbinas.?

O assunto foi parar na Secretaria do Direito Econômico, a SDE, vinculada ao Ministério da Justiça. O órgão determinou a suspensão da exclusividade entre a Odebrecht e os fornecedores. A empresa reverteu a decisão nos tribunais, mas o caso ainda não chegou ao seu final. Ainda cabem recursos. As conseqüências de um embate jurídico seriam desastrosas. Qualquer novo adiamento na data do leilão ou no começo das obras significaria um atraso de vários meses na construção das usinas, pois o período de cheias no rio Madeira, entre novembro e março, impediria o trabalho no local. E o País continuaria com a espada de Dâmocles.