No início da tarde do dia 25 de julho, uma quinta-feira, oito homens invadiram o terminal da empresa de transporte de valores Brink’s no aeroporto de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. Funcionários da companhia de capital americano se preparavam para embarcar uma carga de 720 quilos de ouro, avaliada em cerca de US$ 35 milhões (R$ 140 milhões) quando foram surpreendidos pelos ladrões. Os meliantes, fortemente armados e tendo feito dois funcionários do aeroporto como reféns, estavam vestidos como agentes da Polícia Federal e dirigiam dois carros com aspecto alterado. A ação ocorreu à luz do dia e durou menos de três minutos.

Vizinhança barulhenta: a possível eleição da chapa que tem Cristina Kirchner como vice, em outubro, deve reduzir os negócios da Argentina com o Brasil — e já assusta os investidores (Crédito:Divulgação)

Devido ao peso da carga, os criminosos usaram uma empilhadeira para colocá-la nos carros clonados da PF antes de fugir. A Brink’s chegou a oferecer uma recompensa de R$ 150 mil para quem tivesse pistas sobre o paradeiro dos criminosos. Não foi divulgado a quem o ouro pertencia. Quatro suspeitos de participar do assalto estão presos, e se tornaram réus no dia 13 de agosto, após a Justiça aceitar denúncias contra eles. Outros dois suspeitos de participação no crime, já identificados pela polícia, ainda estão foragidos.

Há poucos dados sobre o crime, mas é razoável supor que a ação tenha merecido uma longa e minuciosa preparação, com gastos elevados. Os automóveis usados no assalto não foram roubados, mas comprados em nome de laranjas. Tudo isso para roubar algumas centenas de quilos de um metal de pouca utilidade prática. O ouro tem poucos usos industriais, exceto facilitar as conexões de aparelhos eletrônicos e telefones celulares. Também vem sendo menos usado em odontologia, devido ao surgimento de polímeros, mais baratos e fáceis de trabalhar. Mesmo assim, há cerca de 10 mil anos, suas pepitas, posteriormente cunhadas como moedas, vêm fascinando os humanos. E mesmo que o ouro venha sendo menos usado como meio de troca, ele permanece um indicador preciso das expectativas do mercado. Em tempos turbulentos, o ouro recupera seu brilho. É o que vem acontecendo nos últimos dias. Na manhã da quinta-feira 15, o ouro em Nova York estava sendo negociado a US$ 1.517 por onça-troy (31,1 gramas), nível mais alto desde agosto de 2013. No acumulado do ano, o metal já se valorizou 17,2% — sua maior alta anual em cinco anos. E há espaço para bem mais.

Sangue nos olhos: manifestante em Hong Kong com atadura simbólica sobre um dos olhos em protesto contra a violência policial. O histórico de repressão do governo chinês não permite otimismo (Crédito:EPA-EFE)

RETÓRICA INCENDIÁRIA Apesar de ser um dos investimentos mais tradicionais e menos sofisticados, o ouro ainda funciona bem quando os proprietários do dinheiro temem que seu valor seja corroído pela inflação. É o que está ocorrendo agora. O movimento de valorização do metal começou em maio deste ano. No início daquele mês, Donald Trump elevou o tom de sua retórica, naturalmente incendiária, na condenação das políticas comerciais da China e do México. Trump vinha postergando o anúncio de um aumento das tarifas comerciais a serem impostas sobre os produtos chineses, na expectativa de um acordo. Porém, a demora chinesa em responder irritou o presidente americano. Ele anunciou que não adiaria novamente o aumento de tarifas. A majoração passaria a valer a partir de setembro.

Isso desestabilizou os mercados. Muitos fundos de hedge vinham apostando em um acordo e na continuidade do crescimento econômico acelerado dos dois lados do Oceano Pacífico. As declarações de Trump os fizeram desmontar essas posições e assumir uma estratégia inversa, comprando dólares e ativos reais, como ouro. “Foi como um Dia D”, diz Fernando Bergallo, CEO da intermediadora de negócios de câmbio FB Capital. Segundo Bergallo, a partir desse momento, a liquidez começou a se apertar, sinalizando que os investidores estavam arredios. “A liquidez internacional diminuiu, o que vai afetar os preços dos ativos de todos os países, o Brasil inclusive.” A situação piorou no início de agosto, quando a China desvalorizou sua moeda, permitindo que o dólar subisse acima de sete yuanes. E o golpe final veio na quarta-feira 14, quando a Alemanha divulgou indicadores de que sua economia estava se desacelerando, após vários anos exibindo um crescimento que parecia imune às turbulências globais. O produto interno bruto (PIB) alemão caiu 0,1% no segundo trimestre em comparação com o trimestre anterior. No primeiro trimestre, a economia havia crescido 0,4%, mantendo a economia fora da recessão por pouco.

Ou vai, ou vai: Boris Johnson, novo primeiro-ministro britânico, quer um Brexit “sem se, nem mas”, finalizado no dia 31 de outubro. Do outro lado do canal, a economia alemã já está desacelerando (Crédito:Niklas Halle'n / AFP)

A causa da desaceleração foi o declínio das exportações alemãs, em especial para a China, que é um parceiro comercial importante da Alemanha. “Esse foi um dos sinais mais preocupantes”, avaliou Andrew Kenningham, economista-chefe da Europa na consultoria Capital Economics em uma entrevista à inglesa BBC. Segundo Kenningham, maior economia da Europa, a Alemanha é o motor que mantém os demais países da Comunidade Europeia em funcionamento. Uma desaceleração alemã pode ter consequências drásticas sobre a região, tornando ainda mais demorada uma recuperação europeia.

Há outros sinais de turbulência no horizonte da Europa. Boris Johnson, o novo primeiro-ministro inglês, que tomou posse no dia 24 julho, vem elevando o tom a favor de um Brexit “sem se, nem mas”. Johnson quer finalizar a desvinculação do Reino Unido da Comunidade Europeia no prazo final de 31 de outubro, ignorando qualquer tentativa de adiamento ou novos acordos. Os desdobramentos poderiam ser desastrosos. A súbita perda de efeito dos acordos comerciais pode, inclusive, levar à escassez de alimentos na Ilhas Britânicas. De qualquer maneira, os preços vão subir, levando à inflação e ao aumento da procura por proteção conta ela, por meio dos investimentos em ouro.

Elevando o tom: acirramento da retórica de Donald Trump contra a China eleva incerteza sobre o desempenho do comércio e o crescimento da economia global (Crédito:Ron Sachs / CNP | Usage worldwide)

SÍNDROME DA CHINA? A turbulência não fica só na Europa. Do outro lado do Pacífico, a ocupação do aeroporto de Hong Kong testa os limites do modelo “um país, dois sistemas”, que vem valendo na China desde que a Inglaterra devolveu a posse de sua colônia, em 1997. Enclave empreendedor no oceano do capitalismo de mercado gerido com mão de ferro por Pequim, Hong Kong vinha desfrutando de liberdades políticas inimagináveis do outro lado da fronteira. Porém, desde o início do ano, uma tentativa do governo chinês de restringir essas liberdades vem causando protestos.

As manifestações se acirraram nas últimas três semanas. No domingo 12, uma manifestante foi ferida em um dos olhos por um tiro disparado por um policial. A imagem da jovem com o rosto ensanguentado viralizou nas redes sociais e tornou-se um símbolo do movimento. Desde então, os manifestantes passaram a usar ataduras manchadas de sangue como um símbolo do protesto, enquanto gritam o slogan “olho por olho”. Se parece algo pequeno, é bom lembrar que, em julho de 2013, um tiro com bala de borracha disparado pela Polícia Militar paulista contra um fotógrafo que cobria uma pequena manifestação de estudantes no centro de São Paulo provocou uma inundação nas ruas.

Fernando Bergallo, CEO da FB Capital: “A liquidez internacional diminuiu, o que vai afetar os preços dos ativos de todos os países” (Crédito:Divulgação)

Enquanto isso, em Pequim, o Escritório para Assuntos de Hong Kong e Macau, um órgão do Conselho de Estado, principal instituição política chinesa para a gestão de assuntos relativos à ex-colônia britânica, continua elevando o tom. No dia 8 de agosto, em uma entrevista coletiva, oporta-voz Yang Guang reafirmou sua total confiança na polícia de Hong Kong e a estimulou a enfrentar os protestos com mais dureza, o que pode ter incentivado a violência no domingo. Na segunda-feira 13, em nova conferência, Yang se referiu aos manifestantes como “terroristas”, o que prenuncia ainda mais violência. O histórico da China é ruim nesse aspecto. Há trinta anos, em 1989, milhares de estudantes e trabalhadores se reuniram para protestar na Praça da Paz Celestial, no centro da capital chinesa. Os protestos começaram em abril e já duravam três meses quando o governo mandou tanques e tropas para dispersar os manifestantes. Conseguiram: não há um número oficial de vítimas, mas as estimativas da Cruz Vermelha chinesa indicam 2.6 mil mortos.

Como se não bastasse tudo isso, a vizinhança prenuncia problemas. No domingo 12, enquanto policiais cegavam uma manifestante em Hong Kong, os eleitores argentinos participaram das prévias da eleição presidencial. As urnas deixaram claro seu desagrado com as propostas austeras do presidente Mauricio Macri, e sufragaram maciçamente a chama presidencial de oposição de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, prenunciando uma vitória em primeiro turno nas eleições de outubro, e aumentando a probabilidade de um congresso majoritariamente peronista. O prognóstico é ruim para o Brasil, pois a Argentina é um parceiro comercial importante. Tudo isso leva para um cenário adverso, de queda no comércio, retração na economia e temores de inflação. Não será uma surpresa se apenas o ouro continuar brilhando.


Nos corações e nas mentes

O ouro sempre fascinou os homens. Basta lembrar um fato histórico. As civilizações europeia e asteca se desenvolveram sem nenhum contato até o Século XVI, quando os espanhóis cruzaram o Atlântico e exterminaram os primeiros moradores do México. No entanto, uns e outros veneravam objetos religiosos que empregavam o mesmo metal dourado.

Mais antigo dos investimentos, o ouro foi um meio de troca e uma reserva de valor desde o fim da Pré-História. Cerca de 700 A.C., o reino da Lídia, localizado na Turquia atual, começou a cunhar as primeiras moedas, uma mistura de 63% de ouro e 37% de prata, conhecidas como electrum. Desde então, o preço do ouro vem influenciando os negócios. Um dos pilares do Mercantilismo, a primeira teoria econômica registrada, era que os países deveriam manter as maiores reservas possíveis de ouro.

Isso valeu até 1971, quando o presidente americano Richard Nixon rompeu o que havia sido combinado no acordo de Bretton Woods, firmado em 1944, e desvinculou o dólar da paridade com o ouro. A maior flexibilidade do dólar permitiu aos Estados Unidos acelerar sua economia, que vinha sendo travada por uma taxa de câmbio desfavorável. Mesmo assim, o ouro permanece como um dos principais indicadores das expectativas dos investidores.