Em plena temporada eleitoral, há um boato recorrente na praça, tão irresponsável quanto fantasioso. Eis o rumor: qualquer que seja o novo presidente, venha ele do governo ou da oposição, o Brasil estará irremediavelmente condenado a decretar o calote na sua dívida interna, hoje em R$ 680 bilhões. Depois de oito anos de estabilidade, o País não teria nenhuma outra alternativa a não ser dar as costas aos credores ? todos aqueles que, como você, mantêm aplicações nos bancos ? e tomar o caminho da argentinização, do corralito e da quebra generalizada do sistema financeiro. O fantasma ganhou tal dimensão que num leilão na terça-feira 11 o Tesouro Nacional não conseguiu vender todo o lote de R$ 2 bilhões em títulos públicos, mesmo oferecendo papéis com vencimento antes das eleições e que, portanto, serão pagos ainda pelo governo Fernando Henrique. Claramente, não se pode negar que há uma crise de confiança instalada no País. Porém, dito isso, qual é a real probabilidade de o Brasil vir a promover um calote na sua dívida? A resposta é zero.

A questão é espinhosa, mas merece ser compreendida nas suas miudezas. Três ou quatro argumentos deixam claro que o risco de uma moratória interna só existe na cabeça de especuladores ensandecidos e analistas pouco informados. O primeiro argumento: grande parte da dívida já foi renegociada, de forma natural, pelo governo nos últimos anos. Antes do Plano Real, os títulos públicos eram rolados praticamente todos os dias, no chamado overnight. Em 1998, o prazo médio de rolagem dos títulos subiu para 4,5 meses. Hoje, já é de 35 meses. Ou seja: embora ainda seja de curto prazo, a dívida foi alongada de forma substancial. Isso significa que, a cada mês, vencem bem menos títulos do que no passado. São cerca de R$ 15 bilhões mensais. ?No que diz respeito aos prazos, o perfil da dívida interna nesta eleição é muito melhor do que era quatro ou
oito anos atrás?, garante Eduardo Freitas, economista-chefe do Unibanco. Até dezembro, vencerão cerca de R$ 100 bilhões. É
sobre esse lote, uma fração que sequer representa 20% da dívida, que o governo poderá ser obrigado pelo mercado a oferecer novos papéis, com prazos mais curtos e taxas de juros maiores, se a instabilidade persistir. O que importa é que mais de 80% da dívida seguirá da mesma forma, com vencimentos em 2003, 2004 ou 2005, nas mãos do próximo governo. ?O novo presidente terá todas as chances de restaurar a confiança?, avalia Octavio de Barros, economista-chefe do BBV. ?Retirar a incerteza é o que basta para
o País voltar à normalidade.?

Há um segundo argumento, ignorado por muitos dos profetas do caos, e que afasta totalmente a hipótese do calote. No País, 100% da dívida, mesmo aquela corrigida pelo câmbio, é emitida em reais. É uma situação oposta à da Argentina, onde toda a dívida era dolarizada e o governo sequer tinha o direito de emitir moeda sem o ingresso de recursos externos. Para piorar, qualquer um poderia manter depósitos em dólares nos bancos, num país que só produz pesos. No Brasil, se os bancos não quiserem mais comprar títulos públicos, o Banco Central poderá, numa situação limite, emitir moeda e pagar suas dívidas em cash. É o que os economistas chamam de monetização da dívida. ?Pode-se até discutir o impacto inflacionário disso, mas é uma arma que afasta totalmente a possibilidade de moratória?, diz o ex-ministro Maílson da Nóbrega, sócio da consultoria Tendências. Além disso, nessa hipótese improvável, os bancos abririam mão de toda a rentabilidade de que desfrutam hoje porque não teriam mais onde aplicar. Ao contrário de outros países, não existe no Brasil um mercado de títulos de renda fixa fora do governo. ?Quem ainda fala em calote, age movido por ignorância ou má-fé?, diz Maílson.

Ainda assim, o governo ainda dispõe de um terceiro argumento, e que faz muita diferença. Numa conferência com investidores promovida pelo banco Goldman Sachs, o secretário-executivo
do Ministério da Fazenda, Amaury Bier, revelou que o Tesouro tem R$ 53 bilhões em caixa para usar em uma situação de emergência. Ou seja: a hipótese de pagar parte da dívida em dinheiro não está descartada. ?O governo tem munição para agir?, confirmou à DINHEIRO Eduardo Guardia, secretário do Tesouro Nacional. Esses recursos representam mais da metade de tudo que vencerá até as eleições. Um outro detalhe: embora tenha crescido muito nos últimos anos, a dívida brasileira, de 54,5% do PIB, está dentro da média internacional. Países como Itália ou Bélgica têm dívidas superiores a 100% do PIB. É evidente que, em poucos países, os juros são comparáveis aos brasileiros. Mas a dívida pode ser estabilizada, desde que os candidatos se comprometam com superávits nas contas públicas próximos aos atuais. Portanto, cuidado. Vista nos detalhes, a realidade da dívida pública nem de longe sugere um calote neste ou no próximo governo, qualquer que seja o eleito. Essa tese só interessa a especuladores e aos políticos que apostam no caos, enquanto você perde tempo e dinheiro.