Nos últimos anos, para combater os impactos da pandemia sobre a economia, bancos centrais e governos afrouxaram políticas fiscais e monetárias. Isso representou não apenas juros historicamente baixos, como também um fluxo sem precedentes de liquidez. Esse tsunami de dinheiro beneficiou as fintechs, que surgiram prometendo uma revolução nas finanças. Mas agora o clima começou a mudar e nuvens cinzentas pairam no horizonte das novatas.

O aperto nos juros e na liquidez nos Estados Unidos para combater a inflação pode colocar em xeque a resistência das fintechs. A situação no Brasil é semelhante. A inflação e os juros altos vêm levando cada vez mais brasileiros a ficar no vermelho. A quantidade de endividados bateu recorde em março, quando 77,5% das famílias fecharam o mês com alguma dívida. De acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), esse foi o maior percentual registrado nos últimos 12 anos, desde que a instituição iniciou as pesquisas. Empurradas para o crédito, muitas famílias apelam para o cartão para completar o orçamento. E com o aumento dos juros, a proporção de famílias com contas em atraso chegou a 27,8%, 3,7 pontos percentuais acima do registrado em fevereiro de 2020, antes da pandemia. Entre empresas, o índice de endividamento também é alto. No último mês, 6 milhões de CNPJs entraram no indicador de inadimplência da Serasa, aumento de 0,5% se comparado ao mesmo período do ano passado. Na avaliação, 52,2% das negativadas pertencem ao segmento de Serviços, 38,9% ao de Comércio, 8,0% à Indústria e 0,9% ao setor primário.

Como seria de se esperar, o aumento do endividamento pressionou os números do calote. A inadimplência cresceu demais até para os padrões brasileiros. O choque de taxas de juros foi o maior da história recente, segundo o professor dos MBAs da Faculdade Getulio Vargas, Robson Gonçalves, saltando de 2% para quase 12% em um ano. “É um cavalo de pau no mercado de crédito e não aumentar a inadimplência seria estranho”, disse. Por isso, as coisas devem ficar mais difíceis para a concessão de crédito. Empresas que só sabiam operar com taxas de juros baixas correm risco de ser extintas, num processo de consolidação comum em épocas mais difíceis. “A alta de juros é um processo darwinista e é preciso ter capacidade de adaptação para sobreviver”, afirmou.

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“A alta de juros é um processo darwinista e é preciso ter capacidade de adaptação para sobreviver” Robson Gonçalves professor da Fundação Getulio Vargas.

Em momentos como esse, a experiência dos bancos tradicionais conta pontos. Foi o caso do Santander Brasil, que divulgou seus resultados na terça-feira (26). Segundo o vice-presidente executivo do banco, Angel Santodomingo, a estratégia foi redobrar os cuidados na concessão de crédito e se preparar para as turbulências já em outubro de 2021. “Conseguimos continuar emprestando e também manter a inadimplência relativamente estável apesar da alta dos juros”, disse ele.

TECNOLOGIA Os critérios na concessão, o uso da tecnologia para fazer a análise do perfil de quem solicita e a estrutura para cobrança podem fazer a diferença a favor ou contra as fintechs, segundo o gerente do setor de investigação patrimonial e advogado da Leme Inteligência Forense, Guilherme Cortez. Um dos grandes diferenciais competitivos é a tecnologia, que ajuda as fintechs a controlar os riscos, analisando as variáveis em tempo real, segundo Renan Schaefer, diretor executivo da ABFintech, associação que representa o setor. “Diferentemente de um banco, elas são mais ágeis. E com Open Banking conseguem antecipar a inadimplência só avaliando os dados”, disse. Para Schaefer, no entanto, o risco sempre existirá nessa atividade, mas os algoritmos podem tentar controlar melhor isso com cruzamentos de dados financeiros e comportamentais, gerando um score de crédito para cada cliente. Mesmo assim a concessão de crédito deve ficar mais difícil, na opinião da advogada especialista em recuperações extrajudiciais e renegociação de dívidas, Juliana Biolchi. “Nesse cenário, quando liberadas, essas operações vêm atreladas a aumento de garantias, o que muitas vezes inviabiliza a tomada de recursos”, disse.

Entre as maiores fintechs que concedem crédito no Brasil estão nomes como Nubank, com carteira de R$ 28 bilhões, Inter (R$ 14,7 bilhões), C6 (R$ 11,7 bilhões), Original (R$ 11 bilhões) e Agibank (R$ 7,1 bilhões), segundo dados do Banco Central. E apesar do cenário adverso elas devem continuar. “Vai ficar mais difícil captar? Até pode ser, mas o capital sempre vai procurar bons investimentos”, disse Schaefer. Procurados, Nubank, Inter e C6 não concederam entrevista.