Defendido pelo presidente Jair Bolsonaro, o chamado “isolamento vertical” da população é uma teoria minoritária entre cientistas e vista com ceticismo pela comunidade médica. Consiste na separação daqueles que estão no grupo de risco à exposição ao vírus, como maiores de 60 anos e portadores de doenças crônicas.

A ideia é que os demais voltassem a circular para movimentar a economia. A teoria foi veiculada pelo diretor do Centro de Pesquisa em Prevenção Yale-Griffin, David L. Katz, em artigo no jornal The New York Times. Katz menciona a estratégia de “imunidade de rebanho”, que consistiria em expor a maior parte da população, jovens sobretudo, ao vírus. Ele cita os dados da Coreia do Sul, que indicam que 99% dos casos de coronavírus são leves e não ensejam tratamento médico específico. “As mortes estão principalmente agrupadas entre idosos, aqueles com doenças crônicas como diabete e doenças do coração, e os que estão em ambos os grupos”, escreve Katz.

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Uma das críticas a essa premissa é sustentada nas avaliações de que, se o sistema de saúde não der conta de atender os infectados, mesmo casos que teriam boa chance de recuperação podem correr risco de morte. O distanciamento social extremo é defendido pela corrente majoritária de cientistas e especialistas de saúde. A ideia é que as infecções não ocorram todas em um curto período de tempo. Assim, as chances de conseguir tratar os infectados é muito maior. A estratégia também é usada para ganhar tempo, enquanto especialistas testam medicamentos e desenvolvem formas de confirmar quem está imune.

Há cerca de dez dias, o Reino Unido, que vinha tentando a estratégia da “imunidade de rebanho”, decidiu recuar e adotar a tática do isolamento para toda a população e não apenas grupos vulneráveis. Foi um estudo do Imperial College de Londres que fez o governo mudar de estratégia ao mostrar o impacto da doença sobre o sistema público de saúde. O estudo apontou que, se o Reino Unido não mudasse, 250 mil morreriam.

Os dados do Imperial College de Londres também tem sido acompanhados pela Casa Branca. No dia 16, depois de minimizar por quase um mês a gravidade da disseminação do coronavírus no país, o presidente americano, Donald Trump, mudou de tom e passou a orientar o distanciamento social extremo.

Nos últimos dias, ele voltou a dizer que o país precisa ser reaberto em breve e citou a Páscoa, em 12 de abril. Trechos do vídeo com essa fala do americano foram veiculados por apoiadores de Bolsonaro no Brasil, como um suposto sinal de que os americanos relaxarão as medidas. Após ser criticado, Trump recuou e disse que a data para reabrir o país é apenas uma sugestão, mas que o fim do isolamento social não acontecerá sem respaldo dos cientistas. Anteontem, Trump afirmou que cogita estabelecer quarentena oficial para Estados como Nova York (onde está a maioria dos casos), New Jersey e Connecticut.

David Katz afirma que o desemprego e a pobreza que resultarão da política de distanciamento social maciça serão também um problema de saúde pública. Economistas como José Alexandre Scheinkman, professor da Universidade de Columbia e emérito de Princeton, têm alertado no entanto para o fato de que as projeções de quantas vidas seriam perdidas com as infecções do coronavírus em caso de colapso do sistema também terão impacto negativo.

“E há outro custo, o de pessoas que ficariam sem produzir por tempo longo, há casos de jovens ficando até um mês em centro de tratamento intensivo. Essa ideia de que os jovens estão sobrevivendo tem a ver com o fato de que até agora os sistemas de saúde foram capazes de tomar conta deles.”

Katz afirma, também no artigo, que crianças e adolescentes sem aulas podem estar transmitindo o vírus para pais e avós. “Se há diretrizes claras para comportamento dentro de famílias, o que eu chamo de ‘interdição vertical’, eu não as vi.”

Contrariamente ao que ele sustenta, a maior parte dos países tem adotado as recomendações da Organização Mundial da Saúde e informando pais sobre a necessidade de ter cuidados extraordinários. Nas diretrizes do CDC, nos EUA, por exemplo, a orientação é para que se tome “precauções extras para separar seu filho de pessoas em sua casa que correm risco”.

Incerteza

O problema na teoria do isolamento vertical é a incerteza sobre suas consequências. O epidemiologista John P. A. Ioannidis defendeu em artigo que é preciso ter mais dados confiáveis sobre o coronavírus, antes de aplicar medidas drásticas, como o distanciamento social extremo. Há consenso na comunidade médica de que as informações são incipientes, mas é exatamente por isso que a abordagem adotada na maioria dos países tem sido a mais cautelosa possível. A Coreia do Sul foi, até agora, o único país que conseguiu fazer teste maciço da população. Outros, como EUA e Brasil, têm tido dificuldade em ofertar testes. E especialistas apontam subnotificação.

Se por um lado isso indica que a taxa de mortalidade pode ser mais baixa, por outro mostra que há infectados que, por não saberem que possuem o vírus, podem transmitir para outras pessoas, se continuarem com atividades rotineiras. “Se o coronavírus infectar 60% da população global e 1% das pessoas infectadas morrerem, isso se traduzirá em mais de 40 milhões de mortes globalmente, correspondendo à pandemia de 1918. A maioria dessa hecatombe seria formada por pessoas com expectativa de vida limitada. Isso contrasta com 1918, quando muitos jovens morreram. Só podemos esperar que, assim como em 1918, a vida continue”, afirma Ioannidis, ao traçar o pior cenário. A taxa de 1% usada pelo epidemiologista considera os resultados dos passageiros do cruzeiro Diamond Princess, todos testados.

Para Harry Crane, estatístico da Universidade Rutgers (EUA), a mensagem de Ioannidis pode “atrasar a resposta crítica e ‘dessensibilizar’ o público para os riscos reais”. “Para um problema dinâmico e complexo, como o coronavírus, sempre queremos mais informação, mas temos de lidar com o que temos. Este não é um projeto de pesquisa acadêmica. É vida real, em tempo real. Diante da grave incerteza, não podemos adiar a ação, aguardando mais evidências ou eliminar riscos catastróficos sob argumento de que é irracional tomar medidas drásticas.”

Caso japonês

O exemplo do Japão tem sido usado por Bolsonaro como um dos casos em que não foram adotadas medidas extremas. O país, no entanto, há um mês fechou escolas e restringiu eventos esportivos que pudessem criar aglomeração de pessoas em espaços fechados. As medidas entraram em prática em fevereiro, mas os japoneses continuaram a frequentar lugares lotados, como metrôs e parques.

Cientistas alertam para o risco de o Japão ter ocultado a real situação, tentando evitar o cancelamento das Olimpíadas de Tóquio. A manutenção do calendário esportivo se tornou insustentável e, depois do anúncio de que os jogos serão postergados por um ano, as autoridades passaram a admitir que Tóquio está em uma fase crítica, “prévia a uma explosão da epidemia”. Os números de infectados também passaram a crescer. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.