Um dos trechos mais impactantes do livro “Medo: Trump na Casa Branca”, escrito pelo jornalista investigativo Bob Woodward, descreve um episódio em que o executivo Gary Cohn, ex-presidente do banco de investimento Goldman Sachs e principal assessor econômico do atual governo dos Estados Unidos, vê sobre a mesa do presidente americano, no Salão Oval, uma carta que seria enviada ao presidente da Coreia do Sul acabando com o acordo de livre-comércio, chamado de Korus, celebrado da década de 1950. Donald Trump estaria furioso com o déficit de US$ 18 bilhões naquele ano, em 2017, e com o custo de US$ 3,5 bilhões para manter tropas na península coreana. A carta, sorrateiramente furtada por Cohn, poderia causar um terremoto na economia global e desestabilizar todo o fluxo econômico e político entre Ásia e o Ocidente. “Parecia que estávamos perpetuamente na beira do abismo”, disse Cohn, no livro. “Era como se estivéssemos sempre andando no limite.” E se o abismo não veio na entrada do midiático Trump à Casa Branca, parece estar mais perto que nunca da saída. Na quarta-feira (6), a tentativa de posse do presidente Joe Biden virou palco para seguidores trumpistas fanáticos, inconformados com a derrota e dispostos a interromper uma democracia que seguia estável há séculos.

O circo começou por volta das 13h em Washington D.C., na sede do Congresso americano, quando dezenas de apoiadores do ex-presidente Trump surgiram com bandeiras e alegando que Trump não deixaria a presidência após uma corrida eleitoral fraudada. No episódio, quatro pessoas foram mortas e 50 presas, segundo informações da polícia local.

O argumento de que o sistema eleitoral foi corrompido e que inflou os manifestantes partiu da boca do próprio Trump que, irredutível em sua caminhada em levar os Estados Unidos à beira do abismo, garante, sem nenhuma evidência, que venceu as eleições e de que é vitima de um complô da mídia e dos empresários para derrubá-lo. O fervor de seus seguidores cresceu no último sábado (2) quando o jornal The Washington Post revelou a gravação de uma conversa por telefone em que Trump pressiona o secretário de estado da Geórgia, o também republicano Brad Raffensperger, a “encontrar” votos a seu favor que poderiam mudar o resultado das eleições no estado. A Geórgia é responsável por 16 votos no colégio eleitoral, e foi determinante para a vitória do democrata Joe Biden em novembro. No estado, Biden venceu com 49,5% dos votos, contra 49,3% de Trump – uma diferença de 11.779 votos.

Win McNamee

Ao não aceitar a derrota para Joe Biden, o presidente e seus seguidores protagonizam um vergonhoso show de imaturidade e desapreço pela democracia. “Trump já dizia antes que desconfiava do sistema eleitoral. Agora, volta a bater nessa tecla, como se tivesse previsto um esquema para lhe tirar do poder”, disse o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

E se a comparação com o presidente do Brasil Jair Bolsonaro é inevitável, o chefe do Executivo brasileiro já deixou claro seus planos de manter o malfadado título de “Trump dos Trópicos”. Em conversa com apoiadores na manhã do dia 7, Bolsonaro deixou um recado. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar os votos, vamos ter um problema pior que o dos Estados Unidos.”

BIDEN REAGE Eleito em novembro de 2020 em uma votação apertada, o novo presidente dos Estados Unidos afirmou que a manifestação de seguidores do Trump não foi um protesto mas uma insurreição. “O mundo está assistindo”, disse. “Palavras de um presidente importam. Não importa o quão bom ou ruim ele seja. No mínimo palavras devem inspirar. No pior dos casos, elas devem incitar”, afirmou o democrata. Biden afirmou que os manifestantes quebraram vidros e portas, abriram escritórios e invadiram salas. “Peço ao presidente Trump que vá à televisão nacional para cumprir o seu juramento e defender a Constituição e exigir que essas pessoas parem com esse movimento”, afirmou.

Susan Walsh

“Peço ao presidente Trump que vá à televisão nacional e exija que estas pessoas parem com este movimento” Joe Biden , Presidente dos EUA.

Para Michael Beschloss, historiador e especializado na presidência dos Estados Unidos, Trump foi um catalisador do caos que o país colhe hoje. “Este é o monstro Frankenstein que os líderes republicanos estimularam e acalentaram por quatro anos. Eles terão que responde à história.”

Outras posturas de Trump também foram alvo de preocupação para segurança nacional. Na semana passada, ele decidiu numa canetada dar um indulto presidencial aos quatro seguranças (Nicholas Slatten, Paul Slough, Evan Liberty e Dustin Heard), da empresa de segurança privada Blackwater, responsáveis por um massacre de 14 civis iraquianos, entre eles duas crianças. Também foram perdoados dois condenados na investigação federal sobre a interferência da Rússia nas eleições de 2016, condenados por falso testemunho para o FBI. Na terça-feira (5), Trump também assinou uma ordem executiva proibindo transações com oito aplicativos chineses, decreto que entra em vigor em 45 dias, já sob gestão Biden. Houve ainda a liberação de venda de armas para a Arábia Saudita.

Com seu estilo caótico, devastador e instável, Trump alimenta a sensação de caos e mantém no mundo e a certeza de que o país caminha no limite do abismo, como descreveu Gary Cohn no livro.