O prédio é antigo, feio, sem garagem, acanhado para os padrões de um dos melhores bairros de Goiânia. Todos os dias, por volta das 9 horas e das 14 horas, estaciona em frente a esse edifício um Honda Civic preto, ano 1994. O automóvel é um dos últimos resquícios do fausto de outrora. De ombros encurvados, cabeça branca e olhar baixo, o engenheiro Pedro Paulo de Souza, 65 anos, caminha rápido em direção ao prédio. Evita ser reconhecido, confessa. Não faz muito tempo que escarraram em público no seu rosto. Resignado, apenas se limpou.

Em sua atual rotina de trabalho, calça sapatos gretados e usa roupas baratas. O escritório tem 70 m2, com recepção e três salas. Racha o espaço e as despesas com dois amigos. São R$ 500 para cada, incluindo aluguel, telefone e secretária. O ambiente é simplório. Divisórias brancas, tapetes rotos, mesas de cerejeira, quadros de feira de artesanato. Nada no ambiente lembra o padrão Encol de qualidade cravado em 12 milhões de m2 construídos em todo o País. Nada nesse homem se assemelha àquele que foi um dos maiores e mais arrojados construtores do planeta. Quando quebrou sua empresa, a Encol, ele comandava 730 empreendimentos simultâneos e 23 mil empregados.

A falência da Encol, em março de 1999, foi uma das maiores tragédias empresariais da América Latina. Deixou 6 milhões de m2
em obras inacabadas e 29 mil famílias sem imóveis. Atrás do
cadáver da construtora, ainda insepulto, há hoje um cortejo de
19 mil ações judiciais em tramitação e cobranças que podem
chegar a R$ 3 bilhões. É provável que muitos desses chefes de família, furiosos em constatar que suas economias foram para
o ralo, tenham desejado o pior para o principal protagonista dessa hecatombe, Pedro Paulo de Souza. Se o amaldiçoaram, ele hoje atravessa um inferno. ?Estou sofrendo de depressão?, disse ele à DINHEIRO. ?O que mais me faz mal é a consciência de que fiz mal para os outros. Foi involuntário, mas fiz. Acho que é esse o motivo maior da depressão.?

Sua voz é fraca, pausada. A equipe de reportagem entrou em
seu escritório, na tarde de terça-feira 25, sem aviso prévio.
Cordato, ele atendeu só para dizer que está sofrendo muito, que
sua família não quer que se exponha ainda mais. Sem entrevistas, nada de fotografias. Argumentou que está com a saúde frágil. Há dois meses quase morreu, estava com várias artérias entupidas.
Fez angioplastia. Também sofreu de glaucoma nos dois olhos.
Aos poucos, aceitou conversar, por hora e meia. No dia seguinte, uma entrevista por telefone. ?Tenho boa índole, pode acreditar.
Eu não queria prejudicar ninguém, mas a empresa acabou atingindo muita gente. A minha família também foi prejudicada. Isso me dói,
me machuca muito.?

Pedro Paulo pouco trabalha no escritório. Por lei, falidos não podem tocar empresa nem possuir talão de cheques. Para efeito externo, presta consultoria para construtoras. Nos últimos três anos, oito clientes. Os maiores, uma obra em Vitória e outra em Cuiabá. Hoje só tem um contrato em Goiânia, ainda assim esporádico e sem remuneração fixa. Está proibido de aparecer nas obras. A verdade é que nenhuma construtora pode mostrar o rosto de Pedro Paulo, sob pena de enfrentar boatos de que seria um negócio oculto do ex-dono da Encol. Em Vitória, por exemplo, ele perdeu o contrato depois de um incidente desses. ?Não há muito serviço, aproveito meu tempo no escritório para estudar?, diz. Dinheiro? Não exibe há pelo menos cinco anos nenhum sinal exterior de riqueza. ?Sempre levei uma vida muito simples, hoje praticamente não tenho gastos.? Pedro Paulo, garantem os amigos, não possuiria hoje nenhum imóvel próprio. Quando milionário, tinha uma casa confortável em Brasília, no Lago Sul, e mantinha um apartamento alugado nos Jardins, em São Paulo. Quando a empresa faliu, primeiro ele fugiu. Ao retornar, a mulher, Gleides, pediu divórcio e ficou com a casa. Ele então foi morar em Goiânia, com um dos irmãos, o industrial Carlos César. O apartamento é um duplex de 1.200 m2, piscina interna. Um de seus advogados o aconselhou a sair de lá. Pegaria mal morar tão bem diante dos clientes prejudicados. Pedro Paulo então alugou um apartamento de dois quartos. Prédio simples, R$ 300 mensais. ?Senti muita solidão, fiquei muito deprimido, não estou em condições de morar só.? Mudou-se para a casa do filho caçula, Paulo. ?Não deu certo, ele só tem 25 anos.? Está de volta ao apartamento suntuoso do irmão. ?Sempre procurei trabalhar com toda a dignidade. Mesmo derrotado, tento manter esse espírito.?

Provações. Sua vida familiar virou outra calamidade. Ele tem quatro filhos, entre 37 e 25 anos. Sempre os tratou de forma espartana. Todos eles vivem hoje cotidianos de classe média, como seus pais. Quando Pedro Paulo quebrou, o primogênito, Rodrigo, engenheiro em Brasília, começou a tratar o pai com a dureza com que foi tratado. Certa vez recusou-se a lhe dar carona. ?Vá a pé?, disse ao pai, segundo testemunhas. Das duas filhas, que moram e trabalham em Brasília, ele recebe muito carinho. Gleides, a ex-mulher, também passa provações. Ela já foi anfitriã de algumas das festas mais fartas da corte. Generosa, adepta de meditações esotéricas, colecionou 300 pares de sapatos. Como único bem de família, a casa de Brasília está preservada da falência. Mas o mobiliário já foi levado em arresto pelo Banco do Brasil. Certa vez Gleides esteve em Goiânia queixando-se a familiares de que o marido deixou todos os bens pessoais em nome da Encol. Tanto reclamou da falta de dinheiro que os parentes foram ao supermercado para lhe presentear com a feira do mês. Meses atrás, durante uma recepção de casamento em Brasília, uma convidada jogou um copo de uísque no rosto de Gleides. Ela hoje trabalha como consultora de decoração para pagar as contas. ?Estou vivendo com muito pouco?, diz.

O processo de falência da Encol é uma tragédia à parte. Há ações judiciais correndo em 68 cidades, com 3 mil brigas entre juízes para saber de quem é a competência.
Há 18 mil reclamações trabalhistas
e toda semana são ajuizadas
mais dez. A Receita Federal
cobra R$ 300 milhões da empresa, para uma dívida que seria
de R$ 100 milhões. Há 34 bancos credores. O Banespa emprestou
R$ 20 milhões e quer receber
R$ 1,1 bilhão. Dos 720 empreendimentos que ficaram no esqueleto, 430 já foram liberados para que os próprios condôminos terminem a construção. Em Brasília, os imóveis valorizaram 300% e todas as 53 obras da Encol serão terminadas. No Rio de Janeiro, dos 15 empreendimentos, só dois foram concluídos. Em Recife, Vitória e Uberlândia, estão todos parados. Em Campinas, a Encol arrasou com o mercado imobiliário. Das 64 obras, 30 estão perdidas; há cinco anos ninguém compra imóveis na planta.

E quanto a Pedro Paulo de Souza? Ele responde a 19 processos criminais, acusado de fraudar garantias, ludibriar compradores e de apropriação indébita de dinheiro do INSS. Já foi condenado em três deles, cinco anos de cadeia em cada. A tendência é que seja condenado em todos. Seus advogados pretendem alegar a tese do ?crime continuado?, que lhe permitirá pegar de oito a dez anos de reclusão. Seu destino está traçado. Por volta dos 68 anos, o maior construtor da história do País deve ser recolhido numa penitenciária. Pode sair aos 70 e terminar de cumprir sua pena em regime de prisão relaxada. ?Já não traço mais sonhos para o futuro?, diz ele.

?Não tenho um dólar?
A grande pergunta, que fazem a Justiça e os credores, é onde foi parar o dinheiro da Encol? A promotora do processo de falência, Bernardete Ramos, já encontrou provas de que ex-diretores teriam saqueado a empresa. ?Mas ainda não sei até que ponto Pedro Paulo foi conivente, omisso ou incompetente?, diz. A Massa Falida contratou por R$ 1,2 milhão a empresa de auditoria Kroll para dar as respostas. O relatório deve sair no início de setembro. A Kroll pretende acusar Pedro Paulo de pelo menos uma operação de remessa ilegal de dinheiro para o exterior, em 1994, para um banco de Londres. Eis as explicações do engenheiro:
O sr. enviou dinheiro para o exterior?
Não tenho um dólar sequer no exterior. O que devem ter encontrado refere-se a uma operação legal com o Banespa. Os recursos do banco aqui dentro haviam se esgotado, mas poderiam emprestar lá fora. O dinheiro foi creditado aqui e depois remetido para Londres.

Há suspeita de que dinheiro da empresa foi desviado para o patrimônio pessoal.
No meu caso ocorreu o contrário. Quando a crise se agravou, coloquei na empresa todo o meu patrimônio pessoal. Transferi uns R$ 5 milhões na esperança de ajudar a salvar a Encol. Foi um erro de avaliação. Me restou só uma casa.

Por que a empresa quebrou?
Superamos todos os governos e planos anteriores, mas não o Real. Recebíamos dos clientes prestações corrigidas a 7% e fomos obrigados a pagar, pela mudança das regras do jogo, juros de 150%.

O sr. tem consciência de que, em casos como o seu, os tribunais têm sido implacáveis?
No meu entendimento, existe um crime quando o empresário deixa de recolher o dinheiro da Previdência e o toma para si. Eu não fiquei com esse dinheiro, nem geria a empresa sozinho. Os bancos ficaram com o patrimônio da Encol.