Advogado que foi responsável pelo plano de privatização do governo Collor lança livro sobre o passado e o futuro do País — e vê o atual ministro da Economia como um conservador intolerante.

Não é de hoje que está em xeque o viés liberal do ministro Paulo Guedes. Para o advogado João Santana, responsável pelo plano de privatização do governo Fernando Collor, de quem foi ministro da Infraestrutura, o defeito de Guedes é não ter uma visão social. “A característica clara de um liberal é ser tolerante. E isso ele não é.” Santana ficou no governo até abril de 1992 — saiu cinco meses antes da queda de Collor — e conseguiu concretizar a venda da Usiminas, a joia da coroa entre as estatais. “Para o Estado brasileiro é necessária a privatização. Cada vez mais que a Petrobras seguir na mão do Estado, ela perderá valor.” Parte das histórias que viveu no coração do poder está no recém-lançado livro O Estado a que Chegamos, em que fala do passado e do futuro do Brasil.

DINHEIRO — O ministro Paulo Guedes é um liberal clássico?
JOÃO SANTANA — Não. Há uma divisão muito clara entre os liberais levando em consideração a questão econômica. E um liberal é muito mais do que isso. Ele tem sido um liberal econômico, defendendo a não presença do Estado na economia, mas não vejo um posicionamento claro sobre questões humanas, de liberdade do cidadão. Paulo Guedes não é liberal e não tem sensibilidade social. É um conversador. Um homem de direita. A característica clara de um liberal é ser tolerante. E isso ele não é.

Em que exatamente ele erra?
Ele tem pouquíssima aptidão para a gestão pública. Faz um belo discurso, mas é um indivíduo que não é protagonista da discussão política. O Paulo Guedes precisa estar aberto para discutir com o Congresso Nacional. Precisa parar com essa postura de ‘venham a mim’. Um liberal precisa ter atuação política, discutir mesmo com os desiguais e conquistando as teses. Esse problema ficou muito claro durante a discussão do Orçamento.

Como se encaixa, no liberalismo, o pensamento para atender banqueiros e ao mesmo tempo pensar em quem enfrenta dificuldade financeira?
O liberal clássico pensa na proteção social. Todos os governos liberais que deram certo, como o da ex-primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher (que morreu em 2013), havia um pensamento grande na questão social. Ela modernizou o Estado. Os banqueiros se revolvem entre eles, não precisam de proteção. O que precisa é proteger a sociedade. Digo no livro que a ótica do Estado precisa estar no cidadão.

Significa, então, que o governo falha em conceder um auxílio emergencial de R$ 250?
Isso foi totalmente mal pensado e mal planejado. A visão desse governo foi de que a pandemia ia durar três meses. Jair Bolsonaro acreditava na imunidade de rebanho. Ninguém procurou a ciência. Se tivessem chamado cientistas, e o Brasil tem nomes importantes, o resultado poderia ter sido outro. Teriam chegado à conclusão de que havia risco grande de a pandemia se estender. Então, poderiam ter projetado uma ação econômica mais regular. Começou dando R$ 600 com um cadastro totalmente errado. Faltou conversar com a iniciativa privada, como a Luiza Helena Trajano, que criou o Movimentos Unidos pela Vacina. Esse grupo fez um levantamento para saber o que os municípios estavam precisando para conseguir realizar a vacinação. Isso é o que o governo deveria ter feito. Ao invés de ficar falando de cloroquina, o governo deveria ter agido de fato. Deveria ter um projeto de pelo menos um ano com auxílio. Faltou essa visão ao Guedes. Não vou nem me referir ao presidente, porque isso ele nunca teve. Não dá para achar que Jair Messias Bolsonaro é dotado de qualidades para chefiar um país. Essa equipe econômica deveria liderar esse processo.

Adriano Ishibashi“O que efetivamente o povo brasileiro está ganhando em manter uma empresa como a Petrobras? O Estado não sabe gerenciar uma grande corporação” (Crédito:Adriano Ishibashi)

A criação de um superministério para Paulo Guedes não virou um problema?
Ele comprou uma armadilha quando trouxe a Previdência para junto do Ministério da Economia. É um erro. A Previdência precisa ter uma estrutura de administração à parte. O Guedes nem fez a gestão cotidiana de várias áreas da economia como não faz da Previdência. Está mais preocupado em fazer discurso. Aí toma uma greve de peritos e não sabe o que fazer.

O senhor foi o responsável pelo plano de privatização no governo Collor. Como se deu a venda da Usiminas?
Ela era a joia da coroa. Quando nossa equipe pensou na privatização, a gente logo pensou que sociedade e os agentes econômicos só conseguiriam entender esse processo se a gente privatizasse algo que valesse a pena. Escolhemos claramente a melhor empresa do governo. Na época, era melhor gerenciada do que Vale do Rio Doce (atual Vale, privatizada em 1996, na gestão de Fernando Henrique Cardoso) e Petrobras. Foi uma escolha proposital, para que ela significasse a queda no muro de Berlim da privatização. Queríamos mostrar que era para valer. Foi muito difícil, porque foi construído um conjunto concreto de interesses econômicos em torno das estatais, além de interesses políticos.

A privatização foi bem aceita pelo mercado?
Uma surpresa que tive é que muitas companhias se afastaram do processo de privatização naquela época. Mesmo com todas as facilidades de compra, como as chamadas moedas pobres, que eram débitos que o Estado tinha, segmentos importantes não entraram. Mas teve gente que percebeu, como o banqueiro Júlio Bozano, que entrou e ganhou muito dinheiro.

Fazendo um paralelo com o governo atual, por que esse caminho não foi seguido?
Tem um traço do brasileiro que é ser fazendário. Quando fomos vender a casa dos ministros, na península dos ministérios, em Brasília, um monte de gente do próprio governo era contra a ideia. E eu insisti que a gente não precisava disso. Gastar com jardineiro, piscineiro e mordomo não é função do Estado. Mesma coisa em relação à Petrobras. Tem gente que diz que mantê-la é estratégico. Mas estratégico para quê?
O que efetivamente o povo brasileiro está ganhando em manter uma empresa como essa? Nada. O Estado não sabe gerenciar uma grande corporação.

O ex-presidente da Petrobras Roberto Castello Branco dizia que o problema da companhia era que ela havia sido assaltada. Como o senhor enxerga isso?
Não é de hoje que há uma relação promíscua entre o Estado e o setor privado. Parece que já está tudo certo na Petrobras e vieram bandidos e fizeram coisa errada. Na Lava Jato, todos os diretores da companhia que foram presos eram concursados e tinham pelo menos 25 anos de casa. Isso nos dá uma dica de que sempre houve uma relação promíscua entre a Petrobras e o meio empresarial. Isso sempre existiu. E existe porque está na mão do Estado. Claro que isso pode ocorrer se for privatizada, mas será entre privados e não com dinheiro do Tesouro Nacional. E tem a Receita Federal para fiscalizar. A dificuldade é preparar um mastodonte desse para privatizar. A modelagem vai ser a ciência. Não dá para transferir o monópolio estatal para o privado. Mas para o Estado brasileiro é necessária a privatização. Cada vez mais que a Petrobras seguir na mão do Estado, mais ela perderá valor.

O ssenhor acredita que há alguma chance de avançar essa discussão?
Não, porque o presidente é contra. Nós conseguimos privatizar a Usiminas porque o Collor era favorável. E incentivador. Bolsonaro é contra porque talvez não entenda muito o que isso significa. E uma boa parte dos militares que o apoiam também tem uma visão antiga do ponto de vista da estratégia. O que precisa é que o Estado seja regulador.

Tirando a Petrobras, quais seriam as joias da coroa atualmente?
Sem dúvida, a Eletrobras, que está nesse processo. Não há razão também para o governo continuar com o Banco do Brasil. Privatização é dinheiro na veia do Tesouro. É venda de ativo. Concessão e Parceria Público-Privada (PPP) é desestatização, mas não é, necessariamente, dinheiro na veia. No caso da Caixa, também há discussão. Acho complicado ter um banco estatal que cuida do social e ao mesmo tempo tem de vender cartão de crédito.

“O que aproxima Fernando Collor de Jair Bolsonaro é a dificuldade de relacionamento político, mas do ponto de vista pessoal, são muito diferentes” (Crédito:Alan Santos)

Qual sua avaliação do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas?
Ele é um técnico competente e conhece a área. Está certo em prosseguir com obras inacabadas e inaugurar. E também está avançando no marco das discussões das PPPs do ponto de vista de prazos e garantias. Por mais maluco que seja o presidente, sempre há ilhas de excelência no governo. Tarcísio é um desses nomes.

Como era a relação com Collor?
Ele sempre foi imperial, muito formal. E sempre foi muito objetivo no trabalho. No começo do governo, assumi a reforma administrativa e ele sempre apoiou. Reuniões ministeriais eram bastante formais, bem diferente do que foi mostrado do atual governo. Para mim, ele nunca pediu nada que beirasse facilitação ou qualquer pedido de interesse do Paulo César Farias, por exemplo. Mas não conseguiu construir base de apoio. Essa dificuldade dele em entender essa questão política foi determinante para o processo de impeachment.

Há diferenças entre Collor e Bolsonaro?
Muitas. O que os aproxima é a dificuldade de relacionamento político, mas do ponto de vista pessoal, são muito diferentes. Acredito que Collor teria comprado vacinas logo no início. Enfrentamos, à época, a epidemia da cólera. E o Brasil lidou bem.

Mas se são tão diferentes, como se explica a aliança entre os dois, a ponto de participarem juntos de recente inauguração em Alagoas?
Isso é mais uma questão de política regional, que ultrapassa qualquer barreira. Em Alagoas há uma conflagração entre os grupos de Renan Calheiros (MDB) e o de Collor e do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas). A orientação política de Bolsonaro parece a de grêmio estudantil.

A CPI da pandemia, por exemplo, em que Renan é o relator, poderia ter sido resolvida, mas o presidente cria problemas. O economista Roberto Campos (que morreu em 2001), com que eu convivi, dizia que o Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade. É bem isso.