Lançado há quase dois anos, o programa Pátria Voluntária segue firme nas redes sociais da primeira-dama Michelle Bolsonaro, que coordena a iniciativa. No mundo real, porém, o programa praticamente não recebe novas doações desde julho do ano passado. Dados do próprio governo mostram que o Pátria Voluntária gastou até agora mais com propaganda do que destinou em doações.

Até março deste ano, o governo empregou R$ 9,3 milhões para divulgar o Pátria. Foram R$ 9,039 milhões em publicidade e mais R$ 359 mil para manter no ar o site do programa. Já as doações feitas por empresas privadas e pessoas físicas que o programa repassou às entidades que atendem pessoas carentes estão em R$ 5,89 milhões. A maior parte foi transformada em cestas básicas. O programa parou no momento em que mais da metade dos domicílios brasileiros enfrentam algum grau de insegurança alimentar em consequência da pandemia da covid-19.

Os recursos arrecadados são depositados numa conta gerida pela Fundação Banco do Brasil e destinados a entidades parceiras. Já o dinheiro usado na publicidade do programa é público: são verbas do Orçamento da Secretaria de Comunicação, arrecadadas por meio de impostos.

No total, 15 dos 23 ministros participam do conselho que define, por meio de chamamento público, as entidades que irão receber as doações. As atas das reuniões mostram, contudo, que eles costumam enviar assessores para representá-los. Desde maio de 2020, o colegiado só se reuniu três vezes. A última foi no dia 23 de fevereiro, diz a Casa Civil.

Na terça-feira passada, Michelle Bolsonaro visitou três cidades do interior de São Paulo para promover o programa. Ela esteve em Presidente Prudente, Araçatuba e São José do Rio Preto, acompanhada da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e do secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia. O trio visitou instituições de caridade e distribuiu “cerca de sete mil cestas de alimentos” para as instituições. A ação também rendeu mais de 120 mil visualizações em um vídeo postado por Michelle no Instagram, com fotos da viagem.

No dia 1.º de abril, em outra postagem no Instagram, Michelle aparece doando ovos de Páscoa a um projeto social para crianças no Recanto da Emas, cidade da periferia de Brasília. As fotos renderam 74,5 mil “curtidas” para a primeira-dama.

Apesar do ritmo das postagens de Michelle, as doações financeiras para o Pátria parecem estar praticamente paradas: um balanço de julho de 2020 menciona R$ 10,8 milhões levantados pelo “Arrecadação Solidária”, um dos braços do Pátria. Oito meses depois, o site da iniciativa da primeira-dama mostra R$ 10,9 milhões recolhidos em doações. Segundo informou a Casa Civil, responsável pela gestão do Pátria no dia a dia, este é o montante arrecadado até 29 de março deste ano. Desse total, apenas R$ 5,8 milhões já foram executados, segundo divulga o governo.

Entre os doadores originais do projeto de Michelle estão a Via Varejo (por meio da Fundação Casas Bahia); a rede Carrefour; o frigorífico Marfrig; as multinacionais Unilever e Bayer; e a rede de estúdios de depilação Espaço Laser, a maior do tipo no Brasil e da qual a apresentadora Xuxa Meneghel detém 50%. Em pelo menos um caso – a Via Varejo – as contribuições foram pontuais e não há previsão de novas doações para o “Arrecadação Solidária”, segundo apurou o Estadão.

Outra grande doadora do programa de Michelle foi a Associação Paulista de Supermercados, a APAS. A entidade reúne 1.500 empresas que somam mais de quatro mil lojas no Estado. Em junho de 2020, a entidade doou 57 toneladas de alimentos e produtos de higiene por meio do Pátria. Os itens foram distribuídos para comunidades ribeirinhas de Afuá e Chaves (PA), na ilha do Marajó.

Em nota à reportagem do Estadão, a entidade diz estar participando de uma nova campanha de doação de alimentos, chamada Doação Super Essencial. A iniciativa envolve empresas de todo o País e é coordenada pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), mas não tem relação com o Pátria.

No fim de março, as ações sociais do governo receberam nova roupagem com o lançamento de mais um projeto batizado como “Brasil Fraterno”. A iniciativa também é coordenada pelo Pátria Voluntária de Michelle Bolsonaro, mas envolve o Ministério da Cidadania, dirigido por João Roma (Republicanos-BA).

No novo projeto, a captação de recursos é feita pelo Sistema S. Nesta sexta-feira, 23, Jair Bolsonaro esteve em Belém (PA) para a cerimônia de entrega de cestas básicas. A ação é parte do novo programa, e não do “Arrecadação Solidária”.

Além disso, o Pátria inclui também um outro projeto, lançado em abril de 2020 e chamado “Brasil Acolhedor”. Neste caso, o foco são entidades assistenciais, como asilos e abrigos.

A queda na arrecadação do Pátria coincide com a realização de operações controversas envolvendo o programa. Em março de 2020, por exemplo, o frigorífico Marfrig doou R$ 7,5 milhões para o Ministério da Saúde para a compra de testes rápidos de covid-19. Em julho, no entanto, o governo solicitou que o dinheiro fosse encaminhado para o programa de Michelle. A verba acabou beneficiando entidades confessionais evangélicas ligadas à ministra Damares Alves, escolhidas de forma discricionária. O caso foi revelado pelo jornal Folha de S. Paulo.

Um parecer da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou, nesta sexta-feira, possível “prejuízo ao erário” na distribuição do dinheiro da Marfrig às entidades. Mesmo que não sejam constatadas irregularidades nas doações, elas deveriam ter sido feitas segundo “critérios objetivos, técnicos e isonômicos, e não de forma a privilegiar determinadas instituições”, de acordo com a área técnica do TCU. O parecer responde a representação do subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado.

Ao Estadão, ele disse concordar com a opinião da área técnica, mas destacou que o parecer não reflete a opinião da Corte – isso só acontecerá se o ponto de vista dos técnicos for endossado pelo plenário do TCU.

A reportagem procurou a Presidência da República, a Casa Civil e o Ministério da Cidadania. Apenas a Casa Civil respondeu com esclarecimentos, mas não comentou o fato de o Pátria gastar mais com publicidade do que com doações.

Campanha teve mais verba do que covid e dengue

A divulgação do Pátria Voluntária está a cargo da agência carioca Artplan, uma das principais prestadoras de serviço do governo federal. A produção dos materiais em si consumiu uma parte pequena do dinheiro – R$ 1,1 milhão. O grosso da verba publicitária do programa presidido pela primeira-dama Michelle Bolsonaro foi para a compra de espaços de mídia. A maior beneficiada foi a Rede Record de TV e rádio, com R$ 1,38 milhão. Embora não seja a campeã de audiência no País, a empresa tem tido destaque na distribuição de verba publicitária no governo Bolsonaro. Para fins de comparação: a TV Globo e suas afiliadas em todo o País ficaram com R$ 839 mil do bolo publicitário do Pátria.

A publicidade do programa também incluiu R$ 545 mil para a veiculação de propagandas em salas de cinema. Segundo a Casa Civil, no entanto, a propaganda foi veiculada antes do advento da pandemia de covid-19.

A divulgação via internet também teve destaque no plano de mídia do Pátria Voluntária. Foram R$ 2,4 milhões para divulgação online, principalmente para grandes empresas do setor: Google (R$ 436 mil), Facebook (R$ 402 mil) e Twitter (R$ 337 mil).

Os gastos do governo com a campanha do Pátria Voluntária também ultrapassam os de várias outras campanhas. Para divulgar a importância de combater o mosquito Aedes Aegypti, por exemplo, o governo usou R$ 2 milhões, em 2020. Para a “conscientização das famílias sobre os riscos de exposição de crianças na internet” o montante dispendido foi de R$ 1,9 milhão; já para falar sobre o “cuidado precoce” contra a covid-19 foram cerca de R$ 6 milhões, segundo a Secretaria de Comunicação do governo.

Os R$ 9,3 milhões da campanha do Pátria são comparáveis ao dinheiro destinado a divulgar ações de enfrentamento à violência contra a mulher em 2019 (R$ 10,2 milhões). Procurada, a Secom não respondeu.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.