Se os planos da fabricante mineira de pães de queijo Maricota se concretizarem, a fatia de exportações no faturamento saltará dos atuais 4% para mais de 20% em pouco mais de dez anos. A Europa se tornará um dos principais destinos dos produtos da empresa. Até lá, barreiras que hoje dificultam a venda na região devem ser simplificadas — e as tarifas, reduzidas. As futuras vantagens para a Maricota fazem parte do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, finalizado na sexta-feira 28, após 20 anos de negociações. “Exportamos hoje muito pouco para a Europa, mas o produto tem procura por lá”, afirma Marília Espalaor, gerente de negócios internacionais do grupo. “Só tem que encontrar o caminho até o consumidor. E agora isso será possível.” A indústria emprega hoje 450 funcionários e só exporta para Portugal. O plano é ampliar as vendas para Espanha e Itália, no mínimo.

Assim como a empresa mineira, outros milhares de negócios devem se beneficiar da facilitação das regras de comércio com os europeus. Nos cálculos do governo, as exportações para o bloco serão incrementadas em até US$ 100 bilhões em dez anos. O texto final do acordo ainda não foi publicado, mas já é possível saber que diversos produtos industriais e agrícolas terão as tarifas de importação mutuamente reduzidas gradativamente até zero. Frutas, café, peixes, carne, calçados, peças industriais e metais serão os mais beneficiados no primeiro momento. Outros, considerados mais competitivos, também chegarão à tarifa zero, mas sob regime de cotas anuais, como a carne bovina, com 99 mil toneladas; frango, com 180 mil toneladas; e arroz, 60 mil toneladas — ultrapassados esses volumes, serão cobradas tarifas ainda a serem definidas.

Colocada na mesa pela primeira vez em 1999, a proposta de parceria entre os blocos representa o maior acordo comercial do qual o Brasil já fez parte, com exceção do próprio Mercosul. O acordo demorou tanto tempo para sair do papel porque foi alvo da objeção de produtores agrícolas europeus. Países como França, Espanha, Irlanda e Polônia praticam agropecuária em pequena escala, muitas vezes familiar, pouco competitiva contra o agronegócio brasileiro. Sob pressão interna, os legisladores europeus não se empenhavam para o tratado tornar-se realidade. Após a posse do presidente Jair Bolsonaro, tomou força também a crítica às suas posições político-ambientais. Desde janeiro deste ano, o governo autorizou o uso de 239 agrotóxicos no País, muitos deles proibidos na Europa desde a década de 1990.

Oposição: agricultores franceses protestam contra o acordo com o Mercosul (Crédito:Juliana Santin)

Apesar disso, acordo foi firmado entre as comissões do Mercosul e da União Europeia. É necessário agora a que o acordo passe pelos Legislativos do Mercosul – no lado europeu, esse crivo não é exigido. Mas a tarefa não deve ser difícil. O bloco é composto apenas por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

Na segunda-feira 2, o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que fará “uma avaliação independente do acordo, especialmente em relação ao meio ambiente e à biodiversidade.” O comentário veio depois de um imbróglio com Jair Bolsonaro durante a cúpula do G20, no Japão. O presidente francês desmarcou um encontro oficial que teria com o brasileiro, alegando ser contrário à posição do País em relação ao meio ambiente. Os dois acabaram se encontrando informalmente, mas a mensagem estava clara: os europeus discordam de vários temas caros à atual gestão brasileira.

Em pé de igualdade: fechado o acordo, falta ao Brasil criar melhores condições para os setores que serão beneficiados. A indústria de calçados aguarda reformas econômicas para competir com os europeus

A Comissão de Produtores Rurais e Cooperação Agrícola da União Europeia (Copa-Copega, em inglês) subiu o tom. “As importações de bens agrícolas do Mercosul estabelecerão uma concorrência desleal para alguns importantes setores produtivos europeus”, afirmou à DINHEIRO Daniel Azevedo, diretor de commodities, comércio e tecnologia da Copa-Copega. Ele lembra ainda que, por mais que o tratado seja um passo em direção ao livre-comércio, o Mercosul não é de fato um mercado único — e o Brasil é protecionista. “O Brasil é um importante fornecedor de carne para a União Europeia, mas impõe restrições à nossa carne, em desacordo com regras internacionais.”

COMPETITIVIDADE O mundo vive uma onda protecionista profunda, puxada pela guerra comercial liderada pelos EUA contra a China. Para analistas, en vez de atrapalhar, isso ajudou a tirar o acordo do papel. “O livre comércio é fundamental para a União Europeia”, afirma Lia Valls, economista da Fundação Getulio Vargas. “O acordo com o Mercosul é uma forma de dizer: temos outros parceiros além dos EUA, não somos refém do protecionismo de Trump.” Além disso, o fim iminente do mandato da atual Comissão Europeia (o Executivo da EU) diminui a força que pressões políticas internas teriam. E se soma aos esforços do presidente argentino Maurício Macri, no lado do Mersosul, para criar um fato positivo a ser usado na campanha presidencial deste ano.

Setor que lidera as exportações brasileiras, o agronegócio é o que mais comemora. “O acordo é um passo fundamental para nos inserir na economia global. Fora que abre oportunidade para outros acordos”, afirma Luiz Cornacchioni, diretor-executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). “Até para se investir será melhor, pois se saberá para onde se vende, as regras do negócio e de qualidade exigida.” Para os fabricantes locais, a perspectiva é de um aumento na concorrência. Os europeus estão particularmente interessados nos capítulos que envolvem a redução de tarifas para carros e autopeças, que deverão chegar a livre-comércio em 15 anos. Mas a entrada de novos concorrentes se dá em todos os setores.

Pelo acordo, 100% dos produtos industrializados no Mercosul terão alíquota zerada. Ainda assim, a ressalva é sobre a disputa no mercado interno. “O importante agora em diante será diminuir o custo Brasil, o peso tributário e as dificuldades para a indústria”, afirma Silvio Campos Neto, economista da consultoria Tendências. “Senão produtos europeus podem roubar mercado local.”

Protecionistas: o presidente francês, Emmanuel Macron (à esq.), prometeu rigor para aprovar o acordo e demonstrou desagrado com Jair Bolsonaro (Crédito:Jacques Witt / Pool / AFP)

João Carlos Marchesan, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) vê enormes possibilidades de aumentar as vendas por meio da exportação, mas cobra isonomia com os europeus. “É preciso melhorar a logística, o acesso ao crédito e diminuir a carga tributária, que torna o Brasil pouco competitivo.” Não que a solução seja subsidiar esses custos, mas executar as reformas que permitam que produtos brasileiros estejam em pé de igualdade com os do redor do mundo. “Precisamos das reformas, senão nada adianta. No Brasil, um maquinário tem de 6% a 7% de impostos agregados. A Europa, zero.”

A opção agora será acompanhar de perto o que será feito pelo governo. “Um detalhe que pode por tudo a perder: a regra de origem”, aponta Heitor Klein, presidente-executivo da Associação Brasileiras das Indústrias de Calçados. “Se um país asiático, por exemplo, estabelecer uma fábrica na Europa, temos que garantir que esse produto não seja incluído na lista de produtos autorizados a virem ao Brasil.” Apesar das ressalvas, é preciso reconhecer que o acordo representa uma conquista valiosa e um passo essencial para conectar o mercado brasileiro ao mundo, tema que estacionou nas últimas décadas.