Nada irrita tanto o orgulho nacional de um uruguaio do que ouvir um estrangeiro chamar seu país de paraíso fiscal. Para um brasileiro, entretanto, essa é uma constatação cada vez mais verdadeira. Desde julho, o único mercado estrangeiro para o qual os brasileiros estão autorizados a mandar seu dinheiro e trazer de volta com imposto virtualmente zero é o Uruguai. A lista da Receita Federal que estabeleceu quais os países o Brasil considera legalmente paraísos fiscais, divulgada há menos de três meses, deixou de fora o menor país do Mercosul e, com isso, criou uma vantagem imbatível a favor dos bancos instalados em Montevidéu. Enquanto o dinheiro de brasileiros vindo de paraísos ?oficiais?, como Ilhas Cayman e Bahamas, paga agora 25% de Imposto de Renda quando entra no Brasil, o dinheiro que vem de instituições financeiras e empresas off-shore uruguaias, pela nova regra, continua rigorosamente isento.

A idéia da Receita ao anunciar a lista era a de tributar aqui os recursos de brasileiros que não são tributados nos paraísos fiscais. Para a Receita, porém, o imposto sobre o dinheiro que brasileiros mantêm no Uruguai já é considerado pago na origem, embora a alíquota lá não passe de uma quase simbólica taxa de 0,3% ao ano sobre o capital de uma empresa off-shore ? ou seja, destinada somente a aplicações fora do mercado uruguaio. O tributo não incide sequer sobre o lucro obtido nos investimentos ou sobre o patrimônio total mantido sob o controle da empresa.

A combinação das leis locais com a lista brasileira dos paraísos fiscais faz do Uruguai o único mercado do mundo por meio do qual o brasileiro pode escapar do imposto sem ultrapassar a fronteira da legalidade e sem ocultar seu dinheiro do governo. Do ponto de vista fiscal, é, sem dúvida, um paraíso. Muitos brasileiros sabem disso: segundo estudo do setor de inteligência da Receita, 40% das contas abertas no Uruguai pertencem hoje a brasileiros. A Receita monitora o fluxo de divisas para Montevidéu com atenção, mas não dá um passo sequer mais adiante. O embaraço é político. Brasil e Argentina, a outra principal fonte de divisas para o mercado uruguaio, já quiseram antes negociar uma mudança nas regras liberais que o país mantém para operações financeiras, mas o Mercosul pôs uma pedra sobre o assunto. O governo uruguaio foi claro desde o início das negociações para a formação do bloco: se fosse para abrir mão de suas regras fiscais, o Uruguai preferia ficar de fora da área de livre comércio.

Tomada a decisão política de não contestar o regime fiscal uruguaio, o governo brasileiro encontrou também um bom argumento técnico. Classificações internacionais como a da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), adotada pela Receita, não listam o Uruguai como paraíso fiscal, porque ele tributa normalmente os investimentos produtivos e as operações bancárias internas. As únicas que estão protegidas pelas alíquotas mais liberais são as chamadas operações off-shore. São aquelas em que o dinheiro vem de fora e tem como destino final também algum outro mercado estrangeiro. O mercado financeiro urugaio serve apenas como passagem.

Para os brasileiros abonados, é uma passagem barata e fácil para o mundo sem imposto sobre lucro e patrimônio. Manter uma empresa off-shore aberta em Montevidéu custa pouco mais de US$ 2 mil por ano, pagos a um escritório de advocacia que cuida de livros contábeis, entrega de balanços e registro de sede para a empresa ? no caso, o endereço da própria banca. A tramitação é num piscar de olhos. Os escritórios costumam ter empresas já abertas na gaveta, controladas por ações ao portador, e podem fazer a transferência para o novo dono a qualquer momento. Os brasileiros sequer precisam se arriscar no portunhol para fazer negócio, porque, nos grandes escritórios, o português é falado pela maioria dos advogados.

A lei que regula os negócios off-shore no Uruguai já tem mais de 50 anos e atraiu para o país boa parte das grandes franquias internacionais das finanças, como Citibank, Lloyd?s e BankBoston. Só sobraram pesos pesados no mercado local. A presença de instituições desse porte e a estabilidade política do país, rara para a América do Sul, são a base do projeto uruguaio de transformar o país no centro financeiro off-shore do continente. ?A idéia deles é fazer ali uma espécie de Suíça brasileira?, compara o advogado Newton José de Oliveira Neves, presidente de um dos maiores escritórios de consultoria jurídica de São Paulo. No caminho de um crescimento mais rápido da praça, porém, há a memória da malfadada Operação Uruguai, usada pelo então presidente Fernando Collor para justificar a existência de dinheiro atribuído a sobras de campanha. ?O Collor acabou carimbando como ilegal qualquer operação feita no Uruguai. Isso gera alguma rejeição entre brasileiros?, relata Edemir Marques de Oliveira, diretor da BDO Directa. Os uruguaios estão avisados do problema e partiram para o ataque: a maior parte das empresas brasileiras que procuram informações sobre o mercado de Montevidéu, segundo Edemir, foi procurada antes por algum escritório uruguaio.