Começa 2022, com muitas esperanças, nenhuma certeza. Depois de dois anos difíceis, que revolucionaram nossa maneira de trabalhar e viver, aproveitar este período para refletir sobre o que nos aconteceu e tentar projetar como pretendemos enfrentar o que vem pela frente pode ser muito oportuno. Antes de tudo, é preciso admitir que a melhor forma de preparação é estarmos pronto para tudo; é aceitarmos que a única coisa certa é a incerteza. E isso, reconheço, não é nada fácil; pelo contrário, é muito desafiador.

Sim, porque de uma forma ou de outra, fomos educados para construir nossa vida e nossa carreira em cima de previsões e certezas. É claro que com o tempo acabamos por constatar que tais certezas nunca foram mais do que meras fantasias e ilusões. Porém, de qualquer forma, tínhamos pelo menos algo mais ou menos sólido de onde partir e projetar. Agora, isso já não é mais possível. Uma das consequências mais importantes dessa hecatombe civilizacional provocada pela pandemia foi o total desmascaramento de nossas ilusões sobre qualquer tipo de certeza em relação ao futuro. A partir de agora, estamos nus e desarmados diante de um futuro explicitamente incerto. Nossa única certeza é que não é mais possível ter certeza de nada. Frente a isso, o que fazer?

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João Guimarães Rosa, na sua obra magna “Grande sertão: veredas”, lembra-nos que “viver é perigoso” e que, portanto, “carece de ter coragem”. Coragem é uma linda palavra que deriva do latim e que combina os termos cor (coração) e agere (agir, ação). Ter coragem, assim, quer dizer agir com o coração. E coração, na tradição antiga que remete aos egípcios e aos hebreus, para além de ser o órgão responsável pela circulação do sangue, é, antes de tudo, a sede da vida espiritual, afetiva e intelectual do ser humano. Para a sabedoria perene e profunda da humanidade, é no coração onde encontramos a força e o fundamento para a nossa existência, para a nossa própria autorrealização.

Viver sempre foi perigoso. Entretanto, a partir de um certo momento na história, em que a crença na razão, na ciência e na técnica possibilitou um domínio e controle inauditos sobre a natureza, o homem moderno passou a alimentar a esperança de que os tempos perigosos estavam com os dias contados. Com isso, fomos como que terceirizando a coragem, cada vez mais confiantes no poder protetor das nossas invenções, planos e instituições. Os efeitos colaterais dessa crença irracional no poder da técnica, que começamos a sentir, principalmente, a partir do século passado com as guerras mundiais e que se agravaram recentemente com os desequilíbrios ambientais, repercutindo não só na saúde do planeta mas também na saúde física e existencial da humanidade, acabaram por revelar que viver não só continua como continuará sendo cada vez mais perigoso.

Vivemos em um mundo cada vez mais incerto e perigoso, e, paradoxalmente, em nossa crença cega na razão e na nossa capacidade técnica, fomos esvaziando nosso coração da coragem necessária para viver no perigo e na incerteza. Diante disso, parece-me óbvio que a coisa mais racional a se fazer nesses novos tempos de incertezas é recuperar a coragem. Mas como proceder para despertar essa coragem que se encontra desabituada e dormente no interior do nosso próprio coração? Os que me conhecem sabem que o remédio que sempre recomendo é o da experiência estética (despertadora) da literatura. Que tal então começar este novo ano que promete ser tão desafiador e perigoso lendo um livro que pode nos ajudar a despertar nossa coragem? Creio que a essa altura da conversa minha prescrição já seja óbvia, não é? Sim, vamos de Guimarães Rosa, de “Grande sertão: veredas”, porque viver vai continuar sendo perigoso e vamos carecer de muita, muita coragem.