No início dos anos 1980, o ex-presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) Paul Volcker ficou consagrado como o grande vilão dos mercados financeiros internacionais. Para debelar uma persistente inflação, Volcker não hesitou em mandar os juros referenciais para 22% ao ano. Como resultado, os países emergentes que estavam endividados quebraram, o sistema financeiro americano teve problemas que levaram quase uma década para ser resolvidos. No entanto, Volcker quebrou a espinha dorsal da inflação de uma maneira tão definitiva que ela nunca mais apareceu.

Quatro décadas e quatro presidentes do Fed depois, o atual titular, Jerome Powell enfrenta um desafio tão grave quanto o de seu antecessor, mas mais difícil de resolver pelo ineditismo. Ao contrário de Volcker, Powell tem de fazer a inflação americana subir. Com níveis próximos de 1% ao ano, os índices de preços ao consumidor dos Estados Unidos estão muito abaixo da meta de 2%. Mais do que isso, eles têm sido bastante refratários à política monetária tradicional. Apesar dos estímulos que já injetaram US$ 5 trilhões no sistema bancário do país, e apesar de o Fed ter lançado mão de ferramentas inéditas – como a recompra direta de títulos privados – os preços teimam em não subir.

Para o brasileiro médio (especialmente aquele com mais de 40 anos), que durante um longo tempo teve de enfrentar preços descontrolados, uma inflação muito baixa parece uma bênção. Porém, para um banqueiro central, preços inalterados ou em queda são um problema sério. Eles indicam uma economia estagnada, em que o dinheiro circula devagar e onde o padrão de vida tende a piorar. Mais do que isso, o receituário clássico para uma economia à baixa temperatura é reduzir os juros. Se os preços declinam e os juros já são baixos, isso representa menos armas no arsenal dos banqueiros centrais.

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UM ANO DE DISCUSSÕES Por isso o tamanho das expectativas com as declarações de Powell no encontro anual em Jackson Hole, uma pequena estação de esqui no estado americano do Wyoming. Depois de um ano inteiro de discussões e audiências públicas sobre o tema, a própria estrutura da política monetária americana vai mudar. Até aqui, a estratégia de perseguir uma meta de inflação e manter o crescimento econômico o maior possível tem sido severa quando os preços sobem demais. Agora, o Fed passará a usar o conceito ainda não definido de “inflação média”. Ou seja, a meta não muda, mas passa a ser calculada em um prazo mais longo. Como os preços ao consumidor estão ao redor de 1% ao ano faz tempo, o Fed será tolerante se a inflação subir para 3% ao ano. Em vez de olhar apenas um mês, o banco central americano vai considerar períodos mais longos. Aparentemente simples, essa medida impedirá que movimentos de recuperação da atividade econômica sejam interrompidos cedo demais.

O Fed já vinha dando sinais de preocupação com a ineficácia da política monetária tradicional. A taxa de desemprego americana estava em 10,2% em julho, bastante abaixo do pico de 14,7% registrado em abril, mas muito acima dos 3,5% de fevereiro, último mês antes da explosão da pandemia. Agora, o banco central americano terá muito menos pruridos em estimular o emprego.

Essa mudança na política monetária americana não passou despercebida pelos investidores. Não por acaso, o índice de ações americano S&P 500 vem batendo recordes sucessivos e subiu 7,7% em 2020, sendo 6,3% apenas no mês de agosto, e ativos reais como o ouro chegaram a ser negociados a US$ 2 mil por onça (31,1 gramas).

O que Powell e seus colegas de Fed querem evitar a todo custo é que a economia americana siga o caminho trilhado pelo Japão no fim dos anos 1980. O país asiático quebrou com uma das maiores bolhas imobiliárias da história. Ainda hoje, as taxas de juros japonesas são negativas e, mesmo assim, a economia não dá sinais de pujança. Por isso, no futuro, assim como Volcker ficou na história como o intransigente banqueiro central que quebrou a economia para domar a inflação (e garantir anos de prosperidade depois), Powell certamente será lembrado como o banqueiro central que mudou a forma de combater a inflação para que, como no passado, o remédio não mate o paciente ainda em recuperação.