Enquanto ainda hoje uma das principais discussões no mundo corporativo gira em torno da pequena presença de mulheres no topo das organizações, a americana Sherry Lansing, de 72 anos, pode ser considerada uma desbravadora. Ela ascendeu ao topo de um dos setores mais competitivos, agressivos, apinhado de gente talentosa, poderosa e glamourosa: a indústria do cinema. Chegou lá num momento, entre os 1970 e 1990, em que Hollywood não parecia aberta a isso, e que o seu sexismo e uma cultura de assédio estavam ainda pouco expostos.

Depois de tentar a carreira de atriz na cidade das estrelas, Lansing ascendeu, em apenas nove anos, de uma script girl da MGM – responsável pela leitura dos roteiros que chegavam ao estúdio –, para presidente de produção da 20th Century Fox, em 1980. Foi a primeira vez que uma mulher conseguiu chegar a um posto de responsabilidade por toda a criação de filmes de um grande estúdio. Doze anos depois, ela atingiu uma posição que parecia ainda mais inalcançável.

Tornou-se a CEO e chairman da Paramount Pictures. Por cerca de uma década, ela aprovou e desenvolveu alguns dos mais importantes e bem recebidos por público e crítica filmes americanos, como Forrest Gump (1994), Coração Valente (1995), Titanic (1997) e O Resgate do Soldado Ryan (1998), cada um deles tendo rendido mais de US$ 200 milhões nas bilheterias. Ainda hoje, esse é considerado um dos mais longos períodos de sucesso sustentado por qualquer estúdio na história de Hollywood.

Titanic foi a maior bilheteria do cinema por mais de uma década e é ainda um dos três únicos filmes a superar a barreira dos US$ 2 bilhões em vendas de ingressos. No entanto, no auge de seu poder, Lansing decidiu abandonar a posição no topo por uma nova vida com uma fundação de filantropia, a The Sherry Lansing Foundation, para apoiar avanços na luta contra o câncer, doença que vitimou a sua mãe. Esse trabalho lhe garantiu, em 2007, um Oscar honorário, o Prêmio Jean Hersholt, conferido a pessoas do cinema com forte atuação humanitária. Entre seus pares na restrita lista de 38 vencedores, estão Frank Sinatra, Audrey Hepburn, Elizabeth Taylor, Jerry Lewis, Oprah Winfrey e Angelina Jolie.

A sua história é contada no livro “Leading Lady – Sherry Lansing and the Making of a Hollywood Groundbreaker” (Crown Archetype), que está à venda no Brasil desde abril. Com tanta experiência e um currículo tão poderoso, Lansing falou à Dinheiro sobre a evolução da presença das mulheres nas grandes corporações e no mundo do cinema, além do futuro do entretenimento. “Fui uma executiva numa época em que não havia referências de sucesso para mim”, diz. “Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas já melhorou muito.”

DINHEIRO – A sra. ascendeu muito jovem ao topo da indústria do cinema. Como isso aconteceu tão rapidamente?

SHERRY LANSING – Não foi tão rápido. O interessante é que demorei três anos e meio depois que me mudei para Los Angeles apenas para realmente conseguir um emprego de período integral. E, depois disso, passei por cada função dentro do estúdio possível para saber como se faz um filme. Por muitos anos, trabalhei sete dias por semana.

DINHEIRO – Sentia que precisava trabalhar mais para provar a sua capacidade? Como era ser uma mulher executiva naquela época?

LANSING – Era uma época em que havia poucas referências para eu me espelhar. Não havia antecessoras mulheres que chegaram às posições que alcancei. Não vivemos num mundo perfeito. Ainda temos um caminho longo a percorrer, mas já melhorou muito. Realmente acredito que me beneficiei de estar próxima de pessoas que acreditavam que mulheres poderiam fazer o trabalho, como Stanley Jaffe [produtor e executivo que foi presidente do grupo Paramount e que fundou uma produtora independente com Lansing, nos anos 1980].

DINHEIRO – Com o longo histórico de testes do sofá e relatos de crueldade com empregados de diversas atividades, a indústria do cinema é mais ou menos preconceituosa que outros setores da economia?

LANSING – Apesar de tudo, é uma indústria bem aberta. No cinema, a única coisa que conta é o talento.

DINHEIRO – A situação das mulheres melhorou desde que começou a trabalhar?

LANSING – Absolutamente. O teto de vidro para a ascensão das mulheres caiu. Há cada vez mais mulheres tomando conta de postos de comando no mercado de trabalho e no cinema. Há também mais diretoras. E elas fazem filmes que atraem o público. O material considerado feminino faz muito sucesso. Mesmo os filmes de ação com mulheres vão bem. Então, vai haver mais mulheres envolvidas em cada etapa da produção de um filme.

DINHEIRO – Alguns países europeus estão discutindo a instituição de cotas para mulheres nos cargos executivos e em conselhos de administração nas empresas. Concorda com essa abordagem?

LANSING – É excitante ver que muitas empresas e governos querem ter mais de 20% de mulheres no topo. Está se iniciando um tremendo progresso. É importante que as empresas tenham as pessoas talentosas trabalhando para elas, independentemente de quem sejam elas.

Titanic, desenvolvido pela Paramount Pictures, sob o comando de Lansing, superou os US$ 2 bilhões de bilheteria e só rendeu menos que Avatar
Titanic, desenvolvido pela Paramount Pictures, sob o comando de Lansing, superou os US$ 2 bilhões de bilheteria e só rendeu menos que Avatar (Crédito:Divulgação)

DINHEIRO – As empresas estão preparadas a prover para as mulheres o equilíbrio certo para poderem ter uma carreira e criarem filhos e uma família?

LANSING – Temos de ser honestos. Criar uma família exige tempo e dedicação. A menos que a mulher tenha um parceiro com quem compartilhar ou que possa inverter os papéis e ficar em casa, é difícil conciliar com uma carreira no topo de uma organização. Sempre é preciso fazer escolhas difíceis. Pode se escolher ficar mais com a família enquanto os filhos crescem. Ou desenvolver uma carreira e depois priorizar a família. Para as mulheres, sempre será difícil equilibrar família e trabalho. Sempre haverá situações de reuniões do conselho na mesma hora que tem uma apresentação na escola. Você pode até fazer as duas coisas, mas nunca vai poder ter 100% de tudo. Todos nós precisamos fazer escolhas.

DINHEIRO – A indústria do cinema é conhecido pelo embate entre pessoas difíceis e poderosas, e na qual o ego é muito inflado. Isso exige alguma habilidade especial do executivo?

LANSING – Do meu lado, a única coisa com que me preocupava era com o filme. Qualquer que fosse a complexidade da produção ou do caráter das pessoas, eu lutava pelo que eu acreditava ser melhor para o filme. E sentia que as outras pessoas também faziam isso. Podia haver diferentes pontos de vista, mas éramos apaixonados pelo filme. Como chefe de estúdio, eu era percebida como alguém que tomava as decisões porque me preocupava com o resultado final. Mesmo as mais difíceis.

DINHEIRO – Imagino que era preciso falar muitos “nãos” para as pessoas. Com tanta gente tentando fazer parte desse mundo, havia muito mais negativas do que aprovações de ideias e planos?

LANSING – Eu estava numa posição de aprovar os projetos. Tomava decisões difíceis, e não poderia dar tudo aquilo que todos queriam. Você precisa negar muita coisa a muitas pessoas. E precisava me preocupar ao mesmo tempo com o resultado artístico e também com a responsabilidade financeira do estúdio. Mas nunca quis prejudicar um filme. Mesmo as pessoas com quem tive os desentendimentos mais fortes continuaram minhas amigas depois desses períodos.

DINHEIRO – Tendo conduzido a realização de tantos filmes de sucesso, de Kramer Versus Kramer (1979), Atração Fatal (1987) a Forrest Gump e Titanic, houve algum projeto que foi mais fácil de realizar? Em que tudo se encaixou rapidamente e deu certo?

LANSING – Não posso dizer que tive um favorito para fazer. Seria como escolher um filho. Mas posso dizer que trabalhei tão arduamente em todos, mesmo nos que fracassaram. E tenho orgulho por cada um dos projetos. Muitos deles tiveram uma vida posterior à bilheteria. Mesmo os que não tiveram sucesso de público acabavam sendo bem sucedidos em DVDs. Eles sobreviveram, se tornaram influentes e encontraram fãs no futuro.

Stanley Jaffe criou a produtora independente Jaffe-Lansing com a executiva e depois foi chamado para presidir o grupo Paramount
Stanley Jaffe criou a produtora independente Jaffe-Lansing com a executiva e depois foi chamado para presidir o grupo Paramount (Crédito:Brian To)

DINHEIRO – Como vê o futuro da indústria do cinema?

LANSING – Sou bastante esperançosa sobre o futuro. Porque o filme é o conteúdo. Atualmente, ele vem de todos os lados. Eu posso assistir a filmes na tela grande ou no iPad. Há muitas oportunidades de se fazer o conteúdo funcionar, hoje em dia. Não importa se seja uma longa série, um filme de longa metragem ou um vídeo curto. Hoje, as pessoas possuem uma oportunidade que eu nunca tive. Não mais é necessário um grande financiamento para algo ser filmado. Elas podem conseguir produzir imagens gravadas por um iPhone e as divulgá-las de diversas formas. Isso é ótimo. Eu nunca tive tantas oportunidades de assistir tanto material bom chegando a mim quanto agora. Sinto-me como se estivesse sempre atrasada correndo atrás de ver todas as coisas boas que são lançadas o tempo todo.

DINHEIRO – Algumas vezes em sua trajetória, a senhora tomou decisões difíceis de promover grandes guinadas na carreira. Desistiu de ser atriz logo depois de fazer um filme com John Wayne, e deixou a indústria no auge do sucesso. Como alguém pode estar seguro na hora de mudar de caminho?

LANSING – A vida deve ser como capítulos. Eu já tinha feito 200 filmes quando resolvi deixar a carreira de executiva. Naquele momento, já não tinha a mesma paixão. Ainda estava apaixonada por trabalhar, mas queria fazer outras coisas. Desejava um estilo de vida diferente. Não mais trabalhar sete dias por semana. E queria poder viajar. Achei que, com 60 anos de idade, devia começar um novo capítulo da minha vida e um novo trabalho. Partir para a filantropia foi revigorante. Senti-me mais jovem. Eu havia feito uma mudança com 30 anos de idade e precisava de outra.

DINHEIRO – É muito difícil deixar para trás todo o poder que vem de controlar um estúdio e ser procurada por algumas das pessoas mais influentes e desejadas do mundo?

LANSING – Eu não senti que abandonei nada. Eu coloquei o meu trabalho antes do meu namorado quando tinha entre 20 anos e 30 anos de idade. E depois pus a família na frente. Agora, sinto que coloquei a minha vida antes de mais nada. Já havia trabalhado no cinema por mais de 30 anos e existe uma teoria que defende que as pessoas precisam mudar a cada 10 anos. É preciso dar um grande salto a cada década. Isso funciona como se estivesse terminando a faculdade de novo. Você aprende coisas novas. Eu deixei coisas para trás ao mudar de área. Mas, antes de tudo, é preciso saber realmente bem o que você quer.

DINHEIRO – Como o trabalho de filantropia é diferente da vida corporativa?

LANSING – Percebi que, para atuar no ambiente da filantropia, precisei de todas as habilidades que desenvolvi no mundo do cinema. Nos dois casos, você tem uma ideia, a apresenta às pessoas, levanta o dinheiro, convence as pessoas a participarem e executa.

DINHEIRO – No Brasil, a cultura de filantropia ainda é muito incipiente. O que precisamos para evoluir nisso, nos próximos anos?

LANSING – Acho que ela vai se desenvolver no Brasil. Os mais ricos vão perceber como é positivo fazer filantropia. Você descobre que acaba recebendo mais do que do que você dá. É um grande prazer ajudar alguém.

DINHEIRO – A sra. conhece o Brasil?

LANSING – Com 30 anos de idade, fui ao Brasil. Viajei a Manaus, visitei a Amazônia quando pouca gente ia para lá, ao Rio de Janeiro, que é uma cidade que amo, e a Brasília. Fiz isso quando era mais jovem e tinha tempo para fazer viagens. Esse período teve uma grande influência na minha vida. Amo o seu país e pretendo voltar.