Foi impressionante a repercussão que meu último artigo neste blog suscitou. Pelas redes sociais, dezenas de leitores se manifestaram, a maioria demonstrando sincera surpresa diante da efetiva “miopia” da nossa visão ocidental do mundo. De fato, como pudemos acreditar tão candidamente que a Rússia (ou pelo menos Putin e seus apoiadores) não quisesse outra coisa senão “ser Europa”? “Como assim?!” – perguntaram-me. Por outro lado, não foram poucos os que questionaram como, efetivamente, a leitura de Dostoiévski poderia nos ajudar a entender o que está se passando. Ela pode realmente contribuir para a compreensão da mente e das ações de um, a princípio, “louco, celerado e megalomaníaco ditador” como Putin?

Começo respondendo que diagnosticar Putin desta forma apenas reforça e cristaliza nossa miopia ocidental-globalizante, marcada pela tendência pueril de julgar superficialmente a realidade a partir de uma perspectiva binária, que decide, com grande facilidade, quem está com o Bem e quem com o Mal.

É óbvio que as ações deste indiscutível autocrata ditatorial – reedição hipermoderna dos mais cruéis czares dos séculos passados, com tons stalinistas cada vez mais distinguíveis – revelam, como não poderia deixar de ser nessas condições, traços claramente patológicos. Entretanto, se fechamos o diagnóstico por aí, na batida fórmula “louco-cruel-com-sede-de-poder”, perdemos a chance de compreender as causas mais profundas desse complexo fenômeno histórico que estamos vivendo, fundamental também para entender melhor o nosso próprio envolvimento e culpa – isso mesmo, culpa, pois, como nos ensina Dostoiévski, todos nós, em alguma medida, somos culpados por todo mal e toda tragédia que existe no mundo. Mas vamos lá…

Em Crime e Castigo, um dos romances mais famosos do nosso genial escritor, Dostoiévski nos conta a história de um jovem sorumbático e misantropo, Rodion Raskólnikov, que concebe e consuma o assassinato de uma velha usurária que enriquece às custas do desespero de pobres coitados obrigados a empenhar objetos de valor para poder subsistir. Ao começarmos a leitura do livro, ficamos com a impressão de que o ato cruel e atroz – Raskólnikov, depois de matar a velha com uma machadada na cabeça, se vê “obrigado” a matar também a irmã dela, que, infelizmente, deu de aparecer no lugar errado, na hora errada – seria consequência de uma reação desesperada e vingativa deste “ex-estudante” faminto e profundamente afetado pelas condições sub-humanas em que vivia. Entretanto, na medida em que avançamos na leitura, vamos percebendo que o ato hediondo impetrado por Raskólnikov tem raízes muito mais complexas. Representante típico de uma geração emergente na Rússia daqueles meados do século 19, o jovem Rodion concebe seu plano como a concretização específica de uma ideia cada vez mais propalada de que crimes, cometidos com a intenção de revolucionar as condições de vida e poder da sociedade, seriam não só justificáveis, como, na verdade, nem poderiam ser considerados crimes. Se a morte de uma “parasita” – assim definia Raskólnikov a sua vítima – for uma ação pertinente e adequada para dar o “primeiro passo” na construção de uma “sociedade mais justa e igualitária”, tal gesto não poderia ser considerado algo vil, mas antes virtuoso, grandioso. Da metade para o fim do livro, descobrimos que Raskólnikov acredita – ou quer acreditar – que as grandes mudanças que caracterizam a evolução da humanidade são, na verdade, fruto do movimento das “pessoas extraordinárias”, extremamente raras e esporádicas na história, as quais, rompendo corajosamente com os limites morais impostos pelo conjunto majoritário das “pessoas ordinárias”, dão o “grande passo” para suplantar uma ordem injusta por outra nova, mais “justa e feliz”. Não há dúvida, entretanto, que nesse processo os “efeitos colaterais” sejam inevitáveis e que muita gente inocente sofra em função do “objetivo maior”; afinal, se seis milhões precisam morrer para que 600 milhões vivam melhor, tal “sacrifício” não estaria mais do que justificado? Eis a lógica matemática que está na base do raciocínio das “pessoas extraordinárias”, grupo ao qual Raskólnikov acredita pertencer, que serve de fundamento para sua “ação” e que justifica também o “efeito indesejável” caracterizado pela morte de Lizavieta Ivanovna, a infeliz e inocente irmã da velha usurária. Entretanto, o “problema” central que Dostoiévski propõe nesta sua obra genial é se esse raciocínio, “perfeito” do ponto de vista matemático e utilitário, sustenta-se e justifica-se, seja no âmbito da ética, seja na dimensão antropológica e existencial. Raskólnikov vai descobrindo, por meio dos desdobramentos externos e internos de sua ação, que talvez o “crime” seja, independentemente dos ideais e pretensões das “pessoas extraordinárias”, crime mesmo, e que, portanto, exija, efetivamente, castigo, punição.

Mas e Putin nisso tudo? Assim como Raskólnikov, Putin se crê uma dessas raríssimas “pessoas extraordinárias” que aparecem episodicamente na história para realizar algo “extraordinário” e mudar os rumos da humanidade. Putin não pretende “dominar o mundo” ou “destruir o imperialismo ocidental”, mas “simplesmente” (sic) “salvar a Rússia”, impedindo que sua cultura, suas crenças e seu modo de vida sejam solapados pelo globalismo ocidental. Ele mesmo declarou, em diversas ocasiões, sobre os perigos de um unipolarismo ocidental e a necessidade de se propiciar um novo multipolarismo como algo benéfico para a humanidade. O projeto de resgate da “Grande Rússia” (da qual a guerra com a Ucrânia seria um desdobramento e passo “necessário”) não é, portanto, um mero delírio xenófobo-nacionalista, mas parte de um “projeto civilizatório”.

Ainda que a ideia de resistência e contraposição à visão de mundo individualista e consumista ocidental possa parecer saudável e necessária, há de se perguntar se o melhor ou único caminho seria mesmo o da violência e da guerra. Seria mesmo o assassinato da velha usurária a única ou melhor forma de combater o parasitismo capitalista-imperialista do Ocidente e assim libertar os pobres e oprimidos sociais e culturais? E o que fazer com as inocentes “lizavietas ivanovnas” que, sem querer, aparecem pelo caminho? Deve-se computar sua morte e destruição como inevitável “efeito colateral” diante do bem maior?

No romance de Dostoiévski, a velha usurária é realmente uma pessoa horrível e inescrupulosa. Sua eliminação, a princípio, até nos parece justificável. Porém, ao acompanharmos Raskólnikov em suas crises, delírios e percepções, vamos percebendo que, por mais que se queira justificar, um crime é sempre um crime; que não existe crime justificável; e que, uma vez iniciada, a escalada do crime acaba por envolver a todos, “culpados” e inocentes, em uma dinâmica autodestrutiva.

Poucos foram os que, como Dostoiévski, até o presente momento, conseguiram elaborar uma crítica tão assertiva e consistente contra o individualismo burguês ocidental, ao mesmo tempo em que soube apontar a riqueza da “alma russa” como antídoto aos efeitos desumanizadores da modernidade. Por outro lado, talvez nenhum tenha ido tão longe quanto ele na demonstração do efeito desagregador e destruidor do crime impetrado por “motivos nobres e justos”. Dostoiévski apresenta-se, portanto, como um meio privilegiado para compreender um personagem como Putin para além das interpretações míopes e enviesadas da visão ocidental. Por meio de Dostoiévski, é possível perceber essa paradoxal vil-nobreza que, num contexto de absoluta carência de líderes e de autênticas pessoas extraordinárias, permite identificar em Putin o último grande herói da resistência contra o globalismo imperialista do Ocidente e, ao mesmo tempo, o inescrupuloso e cruel assassino de homens, mulheres e crianças inocentes, agindo desbragadamente por uma suposta causa nobre.

Creio que por meio deste artigo, mais longo do que de costume – e que por isso peço vênia –, tenha respondido aos leitores e às leitoras que demandaram esclarecimentos sobre minha tese. Espero apenas agora que o próprio Putin se digne em reler o seu genial conterrâneo e assim possa se lembrar que nenhuma solução honrosa é possível por meio do crime, da guerra.

Senhor Putin, lembre-se de Raskólnikov. Lembre-se que sua verdadeira grandeza não se manifestou quando empunhou o machado assassino, mas quando, ajoelhando e beijando o chão, confessou o seu crime e aceitou o castigo. Mostre que o senhor é realmente uma pessoa extraordinária, um russo autêntico: reconheça seu crime e pare a guerra agora, antes que seja tarde demais.