Pode chamar de show do milhão. Na Europa, em euros (as multas chegam a 20 milhões ou a 4% do faturamento global da empresa penalizada). No Brasil, em reais (50 milhões ou até 2% do faturamento). A chegada da Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD) começa a mudar o escopo de todos os comportamentos dentro do ecossistema tecnológico. Por tabela, de todos nós. Hoje, não se compra uma aspirina sem que seus dados fiquem registrados por alguém. Ao mirar no caixa das empresas, as novas regras empurram, cada vez mais intensamente, a busca por proteção e treinamento. E os primeiros cursos começam a surgir.

Em Pernambuco, a Cesar School (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife) oferece a primeira versão do curso de extensão Direito no Tempo de Dados, que começará no sábado, com cerca de 30 alunos. O perfil dos interessados se divide entre pessoas da área jurídica (de 55% a 60%) e empreendedores.

“O pessoal do direito está mais antenado a esse movimento, o que seria natural. Mas percebo também uma movimentação entre os empreendedores”, diz Anderson Paulo da Silva, coordenador do curso. Antes da LGPD, que entrará em vigor em dezembro do ano que vem, vivia-se uma espécie de Velho Oeste do uso de dados privados para todo tipo de negócio. “Era, literalmente, uma terra sem lei”, diz Silva, para quem o fato de existir interesse com tanta antecedência – para os padrões brasileiros – mostra que a regulamentação vem acompanhada de maturidade. “Sabemos que a tecnologia alcança todo mundo. Por isso, o diferencial será aquele que estiver um passo à frente”.

Essa corrida nem tão maluca já está despertando um interesse que começa a ser detectado por ambientes de ensino que costumam abastecer cursos e módulos de capacitação. A previsão mais corrente é de que a LGPD pode provocar no Brasil avalanche equivalente à vivida na Europa com a chegada da General Data Protection Regulation (GDPR), no fim de maio do ano passado. Depois de um ano em vigor, a legislação europeia – que serviu de inspiração para a versão brasileira – trouxe números que surpreenderam até mesmo os mais entusiasmados dos analistas.

De acordo com dados do European Data Protection Board (EDPB), 57% dos cidadãos do continente disseram saber da existência de um organismo local para tratar do tema. O resultado nos 12 primeiros meses de GDPR: 144 mil reclamações, 89 mil notificações de violação de dados e 47 mil outros tipos de queixas. Na Holanda, a lei provocou uma espécie de febre por contestações, com um curioso índice de quase 90 notificações para cada 100 mil habitantes. O ápice disso tudo foi a multa de 50 milhões de euros contra o Google, aplicada pela França no fim de janeiro. A empresa recorreu.

No Brasil, a Cesar School estruturou seu programa em três eixos. A LGPD, em si, utilização de dados/proteção de dados e a chamada jurimetria – “Que é o uso de Inteligência Artificial aplicada para facilitar o exercício do profissional de direito”, afirma Silva. Tanto que no curso haverá um módulo sob condução da ESA/OAB, a Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil (PE), e outro módulo aos cuidados da lawtech Intelivix.

ROBÔ EM AÇÃO Startup nascida no Porto Digital – um dos principais hubs tecnológicos e espaços de inovação no País, com mais de 200 empresas, em que também está a Cesar School –, a Intelivix tem 200 robôs que rastreiam processos nos tribunais do País. Esse volume de informação é higienizado, etapa que consiste em separar o que há de mais relevante para identificar, por meio da I.A., padrões repetitivos, tendências e tomadas de estratégia que mitiguem riscos. No final, tudo passa pela Machine Intelligence Legal Assistant (Mila), segundo a empresa “a primeira assistente legal robô do Brasil”, capaz de separar dados nos processos, como Êxito, Natureza, Juízes e Advogados.

O uso intensivo de dados extraídos e analisados no âmbito da I.A. pode levar à localização de brechas na LGPD – ainda que ela esteja restrita aos dados pessoais – antes mesmo de a lei vigorar. Afinal, uma máquina que é capaz de predizer a tendência de determinado juiz atua num campo delimitado eticamente ou ultrapassa alguma fronteira? O universo do direito vai viver sua revolução de forma ainda mais intensa. E questionamentos de toda a ordem vão surgir. Para Silva, da Cesar School, trata-se de uma nova revolução industrial. “Com certeza, haverá lacunas que ainda não conseguimos observar”, diz. “E em algum tempo, teremos de readaptar algumas coisas.” Num mar de incertezas, sempre há uma certeza: nada será como foi até aqui.