CADÊ OS CLIENTES? A pandemia acelerou as mudanças nos hábitos de compra dos brasileiros, que passaram a priorizar lojas menores e perto de casa (Crédito:Divulgação)

Poucos brasileiros foram tanto ao supermercado nos últimos meses quanto o executivo paulista Jorge Faiçal. A intenção não era fazer compras. Era entender o que os clientes estavam comprando. Como presidente do Grupo Pão de Açúcar (GPA), segunda maior rede supermercadista do País, com faturamento estimado em R$ 32 bilhões no ano passado, ele queria compreender o porquê da queda nas vendas e as razões da brusca mudança nos hábitos de consumo das famílias. E ficou surpreso com o que viu. “Logo percebi que a economia estava navegando em um mar de dificuldades, com inflação de dois dígitos, queda na renda e desemprego muito alto”, disse Faiçal à DINHEIRO, ao justificar a retração de 7,3% nas receitas no acumulado de janeiro a setembro do ano passado — de R$ 22,7 bilhões para R$ 21,1 bilhões. O balanço consolidado de 2021 será divulgado no final deste mês. “Os clientes se tornaram caçadores de promoções, ficaram muito mais seletivos e baixaram o padrão de alimentação, substituindo carne vermelha por frango, porco e ovo”, afirmou o CEO. “A palavra que melhor resume esse período é adaptação.”

Divulgação

Assim como os clientes, a companhia também precisou se adaptar. E encolher. Em uma manobra ruidosa, Faiçal ajudou a conduzir a cisão da rede de atacarejo Assaí, em março. Com o negócio, o Grupo Pão de Açúcar e a então sócia Sendas (dona da marca Assaí) se tornaram empresas autônomas, embora ainda continuem sob o mesmo controlador, o grupo francês Casino. Em paralelo à separação das empresas, o CEO desenhou a estratégia de acabar com a bandeira Extra Hipermercados. Das 103 lojas da marca, 70 se tornarão Assaí — em uma operação que vai render R$ 5,3 bilhões aos caixas do GPA —, 27 serão transformadas em Pão de Açúcar ou Mercado Extra (formato de loja mais compacto) e seis fecharão as portas em definitivo. “A rede [Extra Hiper] dava muito trabalho e pouco retorno. Gerava 25% do volume de vendas, representava 10% do lucro da companhia e consumia 80% do nosso tempo”, disse.

O EXTRA VAI VIRAR ASSAÍ O processo de cisão das empresas controladas pela francesa Casino prevê transformar 71 lojas da bandeira Extra Hiper em unidades de atacarejo da Assaí. Negócio vai render R$ 5,3 bilhões ao GPA, que vai investir R$ 1,5 bilhão em lojas de proximidade Minuto Pão de Açúcar, Mini Extra e Aliados Mini Mercado

Divulgação

Os números do GPA mostram que o Extra Hiper tem sido, realmente, uma bola de aço no tornozelo do grupo. Sem a queda de 15,8% do Extra, as vendas teriam encolhido apenas 0,8% nos três primeiros trimestres de 2021, em vez dos 7,3% contabilizados. A conta não fechava porque, segundo Faiçal, o segmento de hipermercados tem sido, gradativamente, corroído pela concorrência de outros setores não ligados a alimentos, como o de shoppings. A disputa pelo consumidor, na visão do CEO, levou a uma guerra de promoções e empurrou as margens de lucro para perto de zero. A margem de lucro média do GPA, excluído o Extra Hiper, é de 1,5% a 2%, segundo Faiçal.

Enquanto a divisão de hipermercado se tornou um fiasco entre todas as bandeiras do grupo, a Compre Bem (+22,2%) e as marcas da categoria “proximidade” — Mini Extra, Minuto Pão de Açúcar e Aliados Mini Mercado —, com alta de 24%, cresceram em faturamento no mesmo período. Os resultados foram, evidentemente, favorecidos pelo isolamento social durante a pandemia. Num cenário de risco de contaminação e receio de longos deslocamentos, os supermercados de bairro conquistaram a preferência de uma grande parte dos clientes.

Segundo a consultoria Nielsen, o crescimento dos mercadinhos, desde o começo da pandemia, está mais do que evidente. No ano passado, as vendas dos supermercados de bairro independentes cresceram 21,2% em valor e 9,4% em volume, na comparação com 2020. Entre todos os formatos pesquisados, o desempenho em valor das vendas dos supermercados independentes só ficou atrás do ganho no atacarejo, que cresceu 23,1%. Ainda assim, os independentes superaram a média de todos os canais de venda, que avançou 16,3% em valor. Para Bruno Achkar, coordenador da Nielsen, o atacarejo foi impulsionado pelo isolamento social porque a preferência passou a ser por compras de grandes volumes. Já o avanço das lojas independentes ocorreu por causa das restrições ao deslocamento.

ESTRATÉGIA Para atrair esses consumidores que trocaram os hipermercados pelos mercadinhos, os pequenos também se adaptaram às novas demandas, segundo o vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Marcio Milan. “As ações promocionais dos supermercados e a diversidade de marcas como alternativas para os consumidores de menor poder aquisitivo contribuem para o aumento do consumo nos lares”, disse. Pelos cálculos da Abras, de janeiro a novembro de 2021 os gastos das famílias aumentaram 2,88%, enquanto o custo médio da cesta nacional, composta por 35 produtos mais vendidos pelos supermercados, subiu 13,1%, alcançando R$ 697,80.

CLIENTES EM APUROS Com disparada da inflação e achatamento da renda, os brasileiros se tornaram caçadores de promoções e trocaram a carne vermelha pelo ovo (Crédito:Eduardo Matysiak)

Nesse ambiente de encolhimento dos hipermercados e crescimento das lojas de proximidade que o GPA quer construir o que Faiçal chama de “novo Pão de Açúcar”. Nos próximos três anos, a companhia vai abrir 50 lojas Pão de Açúcar (com área de até 1.500 m²) e outras 100 unidades da Minuto Pão de Açúcar, principalmente em bairros mais afastados e com dimensões de uma casa padrão. Esse formato de loja tem custo menor de operação e margens maiores de lucro, segundo o presidente. E é um jogo ganha-ganha. O supermercado lucra mais por produto, e o cliente, mesmo pagando um pouco mais caro, pode gastar menos por não ter de se deslocar até um hipermercado. “O plano é estar onde o cliente estiver, seja no centro, na periferia ou no e-commerce”, afirmou o presidente. “Isso virou o nosso mantra.”

Essa diversificação é o que sustenta o plano de retomada do GPA nos próximos anos. Basicamente, a estratégia tem três pilares: “1P” (vendas na plataforma digital própria), marketplace (revendendo produtos de terceiros, principalmente de pequenos lojistas) e parcerias (vender produtos do GPA em outras plataformas, como Rappi, iFood, Cornershop e Mercado Livre). Além de seduzir clientes adeptos às compras on-line, o GPA quer atrair o público voltado à alimentação saudável, incluindo veganos, vegetarianos, flexitarianos ou mesmo carnívoros tradicionais que buscam melhorar a qualidade das refeições. Para isso, a companhia está testando a aceitação da bandeira Pão de Açúcar Fresh. A meta é inaugurar de 15 a 20 unidades do formato neste ano. A primeira loja, em São Caetano do Sul (SP), aberta em outubro, privilegia a oferta de frutas, legumes e verduras, assim como serviços de açougue, peixaria e sushi (de produção própria). De olho na demanda das compras de reposição de alimentos frescos, a loja oferece 5,5 mil produtos com pegada natureba.

De todas as frentes de negócios, é no e-commerce que está o maior potencial de crescimento. No GPA, o e-commerce responde por 10% dos resultados. Na média geral do setor, só 1% (cerca de R$ 10 bilhões) do faturamento anual do setor de supermerados vem do on-line, segundo a Abras. Nos Estados Unidos, esse porcentual já supera 7%.“Imagine se o Brasil chegar a 5% nos próximos anos? Não vamos ter 50% dos resultados pelo digital, mas o potencial de multiplicação desse mercado é imenso”, disse Faiçal.

CAMINHO INVERSO Enquanto o GPA desiste do modelo de hipermercado, o gigante francês Carrefour, líder do setor no País, com faturamento de R$ 74,7 bilhões no ano passado, quer promover o formato e atrair os clientes que se sentirem órfãos do Extra, segundo o diretor de operações do Carrefour, Geraldo Monteiro. A rede até lançou uma campanha publicitária que, de janeiro a março, será protagonizada pela atriz Claudia Quintino. Durante anos, ela foi a garota-propaganda do hipermercado Extra.

O ataque publicitário do Carrefour corre em paralelo às iniciativas de aquisições. Na semana passada, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) recomendou a aprovação, com os chamados “remédios” (ressalvas), da compra do Grupo Big (ex-Walmart no Brasil). O acordo negociado entre o órgão antitruste e a companhia prevê o desinvestimento em algumas lojas, impactando menos de 10% das unidades adquiridas. Agora, o tribunal do Cade tem até junho para deliberar sobre o caso. Após o fechamento da operação, o Carrefour vai começar a conversão das 388 lojas do Grupo Big.

Embora Carrefour vá para um lado, com aposta em hipermercados, e GPA para o outro, com a estratégia de lojas compactas, o objetivo em comum entre as grandes redes varejistas é estar cada vez mais perto dos clientes. Seja no hiper, seja na conveniência.

ENTREVISTA
Jorge Faiçal, CEO do GPA

 

“Navegamos em um cenário de escassez. Tivemos de nos adaptar”

Como o GPA se comportou na travessia entre o auge da pandemia e o momento atual, de aparente retomada?
O ano de 2021 foi muito desafiador. Um ano de muita instabilidade e volatilidade. Nós, do setor varejista alimentar, passamos o ano com uma combinação feroz entre o aumento da inflação geral nos alimentos. Estamos no 16º mês com inflação de dois dígitos. Sobre os valores de 2020, hoje estamos vendendo 112% a 115% acima daqueles preços. Ao mesmo tempo, tivemos uma forte queda na renda da população, agravada pelo desemprego. Então, o supermercado pesa mais no bolso do consumidor.

Os clientes brasileiros mudaram operfil de consumo?
Os clientes ficaram muito mais seletivos, passaram a pesquisar muito mais, a experimentar novas marcas e a comprar proteínas mais baratas. O consumo de ovo de galinha explodiu no ano passado. O brasileiro teve de dar um jeito para conseguir fechar a conta no fim do mês. E estou falando de uma parcela da população mais privilegiada. A menos privilegiada, infelizmente, passa fome. Navegamos em 2021 em um cenário de escassez. Como empresa, tivemos de nos adaptar.

Quais foram as principais mudanças nos hábitos de consumo?
Além da troca da carne vermelha por proteínas mais baratas, como frango, suíno, peixe e ovo, a venda de cerveja barata caiu muito. Aumentou muito a venda de vinho e destilados. Fizemos muita pesquisa para entender esse consumo. Quando o cliente deixa de ir a um restaurante ou deixa de viajar, ele se trata melhor em casa. Então, alguns setores cresceram, outros caíram. As pessoas se deram ao luxo de ser um chef no almoço de família. Os segmentos voltados para ponta da pirâmide cresceram. A base da pirâmide também cresceu e isso ajuda a entender o bom desempenho do atacarejo. O meio da pirâmide sofreu mais. Isso explica nossa decisão de sair do Extra.

Se o atacarejo está bem, por que separar Assaí do GPA?
O objetivo de tornar as duas empresas independentes é criar valor para os investidores e deixar o GPA mais leve. Foi um movimento de simplificação. Tínhamos uma estrutura corporativa, com duas empresas grandes no Brasil e uma grande na Colômbia, que não precisavam mais seguir desta forma. Agora, GPA e Assaí são duas empresas mais leves do ponto de vista de custo e de governança.

Dentro da nova estrutura, com fechamento de lojas grandes e abertura de unidades compactas, o GPA vai fechar centros de distribuição?
Sim. Vamos fechar três ou quatro centros de distribuição. Hoje temos 18. Mas como vamos ampliar o número de lojas, nossa distribuição poderá ser mais descentralizada. Grande parte da nossa venda do e-commerce, cerca de 75%, sai de nossas lojas, não dos centros de distribuição. Estamos fazendo a redução do tamanho da companhia, se desfazendo do Extra Hiper.

Com o plano concluído, como será o novo Pão de Açúcar?
Estaremos onde o cliente estiver. Vamos vender pelo aplicativo, pelo WhatsApp, pela plataforma própria e em plataformas terceiras. Vamos vender mais nas lojas físicas, entregar mais as vendas on-line, com a James Delivey e parceiros iFood, Rappi, entre outros.