No segundo dia de atividades abertas para o público, um dos casarões do Centro Histórico de Salvador pareceu pequeno para a plateia que assistiu, na noite dessa sexta-feira (11), à palestra da escritora mineira Conceição Evaristo, uma das principais convidadas para a primeira edição da Festa Literária Internacional de Salvador, a Flipelô.

Em pouco mais de uma hora, a autora falou sobre gratidão, reconhecimento, resistência, negritude, racismo e militância, sem deixar de lado a arte que a consagrou como uma figura premiada e reconhecida internacionalmente: a literatura. Aos 71 anos, Conceição Evaristo, reconhece que seus esforços foram válidos para que chegasse onde chegou. No entanto, fez questão de agradecer aos presentes e às mulheres negras em geral, por a terem lido e levado suas obras a espaços sociais, como coletivos de militância, escolas, universidades e livrarias.

“Eu tenho certeza absoluta de que quem me trouxe aqui foram vocês. Se hoje sou publicada por outras editoras, sei que as editoras negras que apostaram e confiaram em mim, antes. Tenho dito isso muito, porque quero que me ajudem a sustentar esse discurso de que não é o Prêmio Jabuti que me fez, não foi a Flip [Feira Literária Internacional de Paraty], nem alguma editora que vem me procurar, mas a mídia me descobriu depois que vocês me mostraram”, disse a autora, seguida de aplausos.

O anfiteatro do Sesc Pelourinho lotou, a ponto de uma parte do público ser direcionada à arena externa do espaço, onde o bate-papo foi transmitido, por meio de um telão, em tempo real. Entre frases e palavras de incentivo e de resistência, Conceição Evaristo arrancava aplausos dos presentes e elogios dos mais diversos. Ovacionada do início ao fim da apresentação, a escritora – que dá voz a histórias da mulher negra por meio de seus personagens – arrancou, também, risadas com seu bom humor e pitadas de ironia.

Personagens inspirados em conhecidos

Sobre suas obras, Conceição Evaristo disse que muitas personagens foram inspiradas em pessoas com as quais conviveu desde que saiu da periferia de Belo Horizonte e foi para o Rio de Janeiro, onde se graduou em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela contou ao público o processo pelo qual passou, quando escreveu Insubmissas Lágrimas de Mulheres, atribuindo a enfermidade que enfrentou, durante o doutorado, à “crueldade da academia”.

A autora ainda revelou que pretende lançar um novo livro de contos, cujo modelo se assemelha a Insubmissas Lágrimas de Mulheres. O título da obra inspirou o nome da palestra proferida na noite desta sexta-feira, no Pelourinho: Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras.

“A nossa história não começa com vitória, sempre começa com luta e resistência, mas eu queria escrever histórias de vitórias e centrar mulheres negras nas histórias, como protagonistas. Eu parti do histórico doloroso dessas mulheres, mas não consegui escrever ainda uma história que eu não traga um elemento meu, que não tenha o elemento dor. Todas as personagens ali, não estão na linha da pobreza e miserabilidade e pensando nisso, saiu o Insubmissas Lágrimas de Mulheres”, explicou.

Conselho às mulheres negras

Às mulheres negras presentes, ou que pensam em começar no mundo da literatura, Conceição Evaristo aconselhou que leiam os textos umas das outras, que compartilhem obras de mulheres negras e se inspirem no mundo da literatura, para que o reconhecimento seja coletivo, assim como foi o dela, que atribui sua trajetória ao movimento negro, com o qual ainda convive. Apesar disso, ela criticou o machismo que ainda existe por parte dos homens, negros ou não, e a ausência das mulheres negras como referências ou citações desses pensadores.

“Eu acredito que, o dia em que os homens negros perceberem que eles precisam ser nossos aliados, que na maioria das vezes nós somos o amparo para as fragilidades deles, eles talvez nos citem. Os homens negros foram os primeiros a crescer academicamente e as mulheres cuidaram dos filhos. Em muitas situações os homens negros não nos citam e não valorizam o nosso trabalho, mas essa falta de cumplicidade, na verdade faz com que eles fiquem, muitas vezes, sozinhos”, disse.

Conceição Evaristo é mestre e doutora em literatura, atuante na defesa das mulheres negras e publicou seis livros, além de ser publicada em antologias. Atualmente é professora visitante da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao fim da palestra, ela destacou a importância da literatura como ferramenta de reflexão e resistência.

“Hoje eu vejo que a literatura, a academia, é um lugar de militância. Se um texto literário for capaz de promover uma reflexão e uma ação, principalmente, eu acho que, mesmo minimamente, essa literatura faz sentido como signo de resistência, de esperança, de denúncia”.

Inspiração

Após o evento, homens e principalmente mulheres demonstravam encantamento com as palavras de Conceição Evaristo, que foi aplaudida mais uma vez. Uma das espectadoras, a recém-graduada em administração de empresas, Graciela Nobre, assistiu à palestra com olhos atentos e, ao fim, contou que ter ouvido os relatos da escritora “foi inspirador”, porque mostra aonde a mulher pode chegar, mesmo sendo negra e com “menos portas abertas”.

“Não só ela como todas as outras do evento, são mulheres de referência, e isso é o que eu busco. São pessoas perto das quais quero chegar. Hoje saí outra mulher, porque isso agrega e transforma, nos faz diferentes do que éramos antes”, disse a moradora de Salvador de 23 anos.

A Flipelô está na primeira edição e as atividades ocorrem até domingo (13). A organização do evento espera a participação de 30 mil pessoas, ao final das mais de 60 atividades. Toda a programação está disponível no site.