“Mais Brasil e menos Brasília”. A frase, usada na campanha presidencial de Jair Bolsonaro, começa a sair do campo das promessas. Com envio ao Congresso de três Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que tratam da maior autonomia dos estados e municípios – com a expectativa de novas medidas chegarem aos parlamentares – o plano do ministro da Economia, Paulo Guedes, tira cidades e estados da tutela fiscal da União e dá liberdade para gestores escolherem a melhor forma de empregar recursos. Com gatilhos para facilitar o arrocho em economias estranguladas, a palavra de ordem é “quem fez a dívida, que pague”. Apesar de esta lógica parecer coerente para lares e empresas, a emancipação pode custar caro, principalmente às cidades e estados pouco comprometidos com a responsabilidade fiscal.

“Precisamos repensar a forma como o pacto federativo foi desenhado”, afirmou Guedes. Na avaliação dele, o governo – em todas as esferas – gasta muito, e gasta mal. “Vivemos no paraíso dos rentistas. Temos um ambiente ruim para criação de emprego, investimento, mas um ambiente amigável para quem quer emprestar dinheiro. É isso que precisamos mudar.” Nesse sentido, o governo anunciou a criação de três macromedidas (PEC Emergencial, PEC do Pacto Federativo e PEC dos Fundos Públicos) que tratam de maior autonomia para estados e municípios, liberação de recursos mais robustos para as gestões locais e gatilhos para cortar custos em caso de emergência fiscal. “O problema é que, apesar de termos uma Lei de Responsabilidade Fiscal, poucos são os gestores comprometidos com ela”, diz o ministro.

As duas primeiras PECs (Emergencial e do Pacto Federativo), que tratam de conter gastos de estados e municípios e redistribuir recursos, são as que mais preocupam parte dos economistas. Para o doutor em contas públicas, professor da Unicamp e ex-membro do Tribunal de Contas de São Paulo Gabriel Galante, com flexibilidade, os entes terão mais autonomia para investir e gerar emprego. “O problema é garantir que os gestores tomem as decisões corretas”, diz. A proposta do governo libera, por exemplo, recursos para aportes em infraestrutura, mas para regiões estranguladas financeiramente o recurso iria para abater dívidas. Eliosmar Ferreira, que foi secretário de Planejamento e Fazenda do Estado do Mato Grosso, entre 2006 e 2009, lembra que“diminuir o déficit é importante, mas se não houver estímulo econômico será como enxugar gelo”.

O anúncio das medidas, mesmo apontando para anseios do mercado, gerou também desconfiança. Muito, claro, por causa da maneira atabalhoada com que o Planalto tratou a reforma da Previdência, que saiu mais por habilidade de líderes congressistas – em especial Rodrigo Maia, presidente da Câmara –, que por tropas palacianas. A economista e professora da USP Laura Carvalho avalia que as mudanças seriam uma “miniconstituinte”, já que prevê alterações em muitos pontos da Constituição de 1988. “Meu medo é que o projeto seja uma forma de o governo aproveitar o argumento da estagnação econômica para mexer em direitos fundamentais”. Entre os argumentos para sustentar tal receio, a professora citou a questão da redução de jornada de servidores públicos em caso de emergência fiscal. “Serão só os funcionários administrativos ou professores e médicos também podem ter horas cortadas? Isso afeta diretamente o direito ao acesso ao estudo e à saúde pública”, diz.

GRANDE ENCONTRO Presidente Jair Bolsonaro foi, pessoalmente, entregar as três propostas de emenda à Constituição ao Congresso Nacional (Crédito:Marcos Corrêa/PR)

A expectativa do governo é ter a boa vontade política de estados e municípios para moldar a opinião pública e contornar categorias historicamente resistentes a mudanças como a do funcionalismo público. Para isso, a promessa é uma chuva de dinheiro. Segundo o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, serão destinados aos estados e municípios cerca de R$ 400 bilhões em 15 anos. “Será uma verdadeira mudança na federação. Poderemos deixar o recurso na ponta, com a presença do estado da maneira correta”. Ele acrescenta ainda que a União deixará de ser fiadora dos estados e cidades, atuando apenas em operações de crédito com entes internacionais a partir de 2026. “Agora cada um paga sua conta. A forma como é hoje acaba pressionando o Tesouro Nacional. Quem faz a divida, que arque com ela. É assim que tem de ser”. Pela proposta, a União fica proibida de prestar socorro fiscal a partir de 2026.

Para se ter ideia da autonomia dos estados e cidades, um bom exemplo é o uso do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Hoje os recursos são divididos em três partes iguais de R$ 9,8 bilhões cada. Caso aprovada a proposta, a fatia do governo federal iria direto para os municípios e estados. Outra mudança importante diz respeito à alocação de recursos em saúde e educação, que possuem mínimo obrigatório. Agora, a ideia é que os mínimos para saúde (15% do orçamento dos municípios e 12% dos estados) e educação (25% do orçamento de municípios e estados) possam ser somados e distribuídos como o gestor escolher. Para o ex-secretário de Mato Grosso Eliosmar Ferreira isso pode ter caráter eleitoreiro. “Se hospital der mais capital político que escola, teremos mais hospitais, ainda que a urgência seja outra.”

Na avaliação de Laura, da USP, outro problema é que a redução dos recursos, em qualquer área, contraria orientações mundiais sobre sair de crises. “Precisamos flexibilizar o investimento, e não flexibilizar o potencial de cortes”. Para a acadêmica, a questão fiscal foi acentuada com o Teto dos Gastos. “O problema é que o teto amarrou a capacidade de investimento do governo. Se tudo continuar como está, ano que vem o governo estoura o teto, por isso essa urgência. Se aprovar este ano, em 2020 a União entra em situação de emergência e poderá fazer cortes.”

As duas primeiras PECs impactam altamente estados e municípios, enquanto a terceira está mais relacionada à União, a chamada PEC dos Fundos Públicos. Segundo Guedes, foram mapeados 281 fundos públicos e pelo menos 240 seriam extintos, reforçando o caixa federal com cerca de R$ 220 bilhões. A ideia é usar esses recursos para diminuir o déficit. O problema é que boa parte dos deputados faz parte, justamente, de frentes parlamentares que defendem o direcionamento destes recursos para seus respectivos setores. O Fust, por exemplo, é destinado à universalização dos serviços de telecomunicações, e seria um dos alvos.

DESAFOGANDO A UNIÃO Secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirma que o pacto federativo atual pressiona as contas públicas do governo federal (Crédito:Divulgação)

Enquanto especialistas e governo avaliam os pontos positivos e negativos da medida, o Congresso Nacional também se move. Ainda que seja esperado que ao menos a PEC Emergencial seja aprovada este ano, em Brasília o tom de deputados, de oposição e situação, é de que não seja possível dar a celeridade esperada pelo governo. Em resumo, o que o governo entende como urgência o Congresso sinaliza como ‘fica-para-depois’. A deputada federal pelo PSOL em São Paulo, Sâmia Bonfim, afirma que a proposta desestabiliza direitos constituídos. “Nós, do PSOL, temos propostas para resolver a crise econômica invertendo prioridades e defendendo os pobres. A começar por uma reforma tributária que taxe as fortunas, os lucros e dividendos, atacando a desigualdade”, diz. Em condição de anonimato, um deputado do PSL afirmou a DINHEIRO que a forma como as medidas foram colocadas torna a aprovação em 2019 difícil. “São muitas regras, muitas mudanças, muitas negociações em pouco tempo.”

Para o parlamentar, além de enfrentar a resistência da oposição, dos servidores públicos e de parte da opinião pública, haverá grande dificuldade de avançar com as medidas às vésperas de eleições municipais (2020). “A parte do texto que toca na eliminação de municípios não passaria em ano eleitoral”, diz. Segundo estimativas do governo, dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros cerca de 1,2 mil seriam extintos – aqueles com menos de 5 mil habitantes e cuja capacidade de gerar receita fique abaixo de 10% do total de gastos. Seriam eliminadas mais de 1,2 mil cadeiras de prefeito e 11 mil cargos de vereadores, além de vagas administrativas.

A aprovação de uma PEC é sempre a parte mais difícil, por exigir votações em dois turnos tanto na Câmara quanto no Senado e aprovação por parte de três quintos dos parlamentares de cada casa. Oficialmente presentes na entrega do pacote de Guedes, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ, ver quadro), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), prometeram dar celeridade ao texto. Na última quarta-feira 6 o presidente do Senado reuniu 40 parlamentares e o ministro Paulo Guedes para falar sobre o texto. Na saída, tanto Guedes quanto Alcolumbre reforçaram a necessidade de diálogo para adaptação da proposta.

Com relação à estratégia para aprovação das PEC, o jogo de xadrez de Guedes é repassar, além das três PECs já encaminhadas ao Senado, uma PEC que trata da reforma administrativa à Câmara, reforma tributária à Comissão Mista, e o projeto de Lei sobre desonerações na folha de pagamento. Das que já foram enviadas (PEC Emergencial, a PEC do Pacto Federativo e a PEC dos fundos públicos) a divisão da relatoria já foi definida: Na PEC dos fundos públicos o relator no senado será Otto Alencar (PSD-BA); a emenda que trata do pacto federativo terá relatoria de Márcio Bittar (MDB-AC) e ficará com o Podemos, ainda sem definição do parlamentar, o texto final da PEC Emergencial. No aguardo dessas novas medidas, uma incoerência surge no horizonte: a geração de empregos. Segundo Guedes o governo estuda como desonerar a folha de pagamentos. Tal medida será voltada a jovens e idosos. O problema, diz Ferreira, é que se o governo entrar em situação de emergência fiscal ficará impossibilitado de fazer desonerações. “Há alguns pontos de conflitos nos textos que ainda precisam ser ajustados”.

Dentro dessas mudanças, para que não haja malversação dos recursos a saída é a criação de um Conselho Fiscal da República. Nele estariam membros dos Três Poderes, além de integrantes dos tribunais de contas da União, Estados e Municípios. “Todos os poderes que têm a capacidade de manter ou desestabilizar o equilíbrio fiscal da República se reúnem a cada três meses para tratar da situação fiscal”, afirmou Guedes. Para o ministro, muitas vezes, os tribunais estaduais e municipais aprovam contas de gestores que não seriam aprovadas pelo Tribunal de Contas da União, e com o conselho será possível unificar a métrica de avaliação. sobre o Supremo Tribunal Federal (STF), a participação visa alinhar as decisões da Corte em medidas que não causem impactos inesperados para as contas públicas. “O STF recebe todo tipo de demanda. Há contas de todos os tipos, e ninguém protege a viúva. A viúva é a União”, diz.


Fator Maia

Por Edson Rossi

Desta vez a estratégia foi outra. Mas o fator decisivo será o mesmo: Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. As reiteradas demonstrações de inabilidade nas articulações políticas conduzidas pelo governo Bolsonaro só não implodiram a reforma da Previdência pela habilidade de Maia. Isso de um lado. Porque de outro lado veio o velho toma-lá-da-cá tão verbalmente rechaçado pelo presidente da República – cada deputado que votou a favor teria recebido do governo a promessa de conseguir R$ 40 milhões em emendas. Com os 379 votos a favor, em primeiro turno, só aí já daria mais de R$ 15 bi. Fora os senadores. Desta vez o governo chegou menos truculento e encenou força e unidade ao levar ao Congresso as PECs. Mas Maia deu seu recado.

Oficialmente, ele e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), receberam de Jair Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, o conjunto de medidas. Na prática, não saiu na foto. Vazou da Casa para participar de uma reunião. Em longa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo no primeiro domingo do mês, Guedes se posicionou como condutor de um novo Estado brasileiro. E esse papel é o mesmo pretendido por Maia. Como não existe roteiro político com dois heróis, o Pacote Guedes vai depender do Fator Maia.