Quando chegou à Itália, em 2010, com 25 anos, o meio-campista pernambucano Anderson Hernanes de Carvalho Viana Lima já era um colecionador de títulos no futebol. Bicampeão brasileiro pelo São Paulo (2007 e 2008), havia sido eleito o melhor jogador da competição e apontado pelo jornal britânico The Times como o mais promissor do mundo em 2009. Vendido pelo tricolor paulista para a Lazio, de Roma, por 13,5 milhões de euros, ele entendia muito de bola, mas nada de vinho. Foi a mudança para a capital italiana que abriu sua cabeça para a bebida tão presente na Bíblia ­— cujas recorrentes citações de Hernanes em entrevistas gerou o apelido de O Profeta, dado pelo então repórter esportivo Thiago Leifert. “Eu costumo dizer que o vinho foi para mim como a maçã para Isaac Newton”, disse o atleta à DINHEIRO. “Foi tentando entender por que a maçã caía que ele desenvolveu todas aquelas teorias geniais. Quando eu entendi que o vinho é um processo natural de fermentação da uva, minha cabeça se abriu. Passei a querer descobrir e experimentar cada vez mais”, afirmou.

Em poucos anos, Hernanes passou da “ignorância” em vinhos ­— e também na gastronomia, como ele mesmo reconhece — para o status de produtor de uvas e dono de um empreendimento enoturístico: a Ca’ del Profeta (Casa do Profeta), em Montaldo Scarampi, na região de Asti, no Piemonte. São 4,5 hectares de vinhedos plantados com as uvas autóctones Barbera, Grignolino e Brachetto, além de uma pousada com apenas cinco suítes e um restaurante. No comando das panelas está o chef italiano Christian Milone, que fez carreira como ciclista profissional e já possuía uma estrela no cobiçado Guia Michelin quando assumiu a cozinha da Ca’ del Profeta. “Na Itália há uma cultura da comida, uma valorização dos ingredientes da estação, das técnicas de preparo”, afirmou Hernanes. “Fui me aproximando desse mundo por curiosidade. A partir de 2011, comecei a fazer cursos, degustações, visitas a vinícolas”. Foi assim que, segundo ele, surgiram suas primeiras descobertas: as sutilezas que fazem a diferença de uma região para outra, a tipicidade de uma determinada uva. Até que se apaixonou por um lugar e passou a sonhar com a sua própria cantina, com um belo jardim, vinhedos e um local para hospedar visitantes. “Eu queria estar nesse meio da vitivinicultura”.

NA CARA DO GOL O jogador na propriedade piemontesa onde mantém 4,5 hectares de vinhedos e que ele transformou em empreendimeto enoturístico. (Crédito:Divulgação)

O que começou como paixão, logo se transformou em investimento. Aos 36 anos e de licença do Sport Club do Recife, pelo qual jogou a última temporada do Campeonato Brasileiro (rebaixado, o time disputará a Série B do Brasileirão em 2022), o ambidestro Hernanes não pretende jogar bola por muito mais tempo. “Como jogador, eu não busquei apenas títulos. Queria entreter as pessoas na arquibancada, dar ao público emoção com meus dribles e gols. É isso que eu busco com o vinho e com o restaurante”, disse. “Na Ca’ del Profeta eu estou colocando a pessoa na cara do gol, e o gol é uma das emoções mais incríveis que alguém pode provar na vida. O gol é mágico. É isso que eu quero oferecer.” Não por acaso, Hernanes escolheu uma frase do poeta francês Alphonse de Lamartine para a página de abertura do site que apresenta seu empreendimento: “A experiência é a única profecia do sábio”.

Com arquitetura moderna, o resort fica no alto de uma colina e tem vista panorâmica dos vinhedos. Das cinco acomodações, quatro receberam nomes de evangelistas: Lucas, Marcos, Mateus e João (todos na grafia italiana). A quinta homenageia Ezequiel, sacerdote e profeta que viveu entre 622 e 570 a.C. e ainda hoje é reverenciado pelas três religiões monoteístas. Seu nome é traduzido por “A força de Deus” ou “Deus fortalece”. Também teve inspiração nas escrituras o vinho Efraim, o mais sofisticado dentre os quatro que levam a marca Ca’ del Profeta. Na Bíblia, Efraim é um dos filhos de José. Segundo Hernanes, quando deu o nome ao filho, José disse: “Deu me abençoou na terra do meu sofrimento”. Algo parecido se deu na vida do jogador. “Eu havia acabado de chegar à Juventus, vindo da Inter, e a minha adaptação foi um pouco sofrida devido à rivalidade entre as torcidas”, afirmou. “O vinho é como um filho e eu escolhi esse nome por entender que Deus iria me abençoar na terra em que eu enfrentava tempos difíceis.” Na Juventus, Hernanes terminou a temporada 2015–16 com os títulos do Campeonato Italiano e da Copa da Itália.

LETRA GREGA A analogia do vinho com o filho não se limita ao Efraim. “Eu quero que cada vinho me represente. Eles são a minha história, trazem a minha assinatura”, afirmou Hernanes. A começar pelo rótulo. Seus quatro vinhos trazem estampada a letra grega Pi, de forma estilizada. “Meu apelido de criança era Pi. Eu gosto muito de matemática, das coisas exatas, precisas. E o vinho, apesar de ser um produto da natureza, exige uma precisão incrível”, disse. Além de representar a “ciência do vinho”, a letra grega nos rótulos traz outros elementos alusivos à história do atleta. Uma das “pernas” do Pi é um jogador de cabeça para baixo segurando uma bola. “Quando eu fazia um gol, dava um salto mortal”, disse. Vista de perto, a bola que ele segura é o círculo central da bandeira do Brasil. Na outra “perna”, uma parreira se eleva sobre um cajado, o símbolo dos profetas.

Embora admita que seu conhecimento enológico seja apenas empírico, Hernanes se dedicou a todos os detalhes desde o início do projeto. Quando adquiriu a propriedade, recomendou que as vinhas já existentes não recebessem qualquer pesticida ou herbicida químico. “É a minha casa e ali vamos receber pessoas. Precisa ser um ambiente puro e limpo”, disse. A primeira safra foi vinificada por Paolo Coppo, conhecido no Piemonte como “o rei da uva Barbera”. Torcedor da Juventus, Coppo ficou amigo do jogador e aceitou, excepcionalmente, fazer o vinho para o ídolo. “Fiz muitos testes para saber o que as uvas poderiam me dar. Eu sabia o que queria: um vinho que me agradasse”, afirmou o Profeta. Não é exagero dizer que Hernanes fez quatro golaços em forma líquída.